terça-feira, 17 de novembro de 2009

Katharina & Sebastião [conto]

“Triste é partir sem data para regressar.

Ainda mais triste é o regresso, quando não há ninguém à espera.

E acontece que a vida é uma grande viagem, para a qual não se tem data marcada, na qual a esperança de que alguém fique à espera acaba sendo uma esperança só. Ou a desesperança de quem não pôde esperar mais.”

Bonito, isso.

Às vezes vêm umas frases show nesta revista. Na página de citações. Nas outras páginas vêm só os carão. Modelo, ator, atriz, esse pessoal todo das novelas. Aí é bom de ver, né? Pra encher os olhos. Pra saber qual é a moda, o que está in, o que está out. Qual é a cor da estação. Quais são os acessórios. Quem está namorando quem. Quem separou. Mas bom mesmo é a página das citações. Faz a gente pensar. Porque pode ser coisa que alguém disse nesta semana ou pode ser coisa que disseram, assim, tipo, uns cem anos atrás. Essa frase, mesmo: “Triste é partir sem data para regressar.” Quem escreveu foi Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego. Tá escrito aqui. E é tão lindo, porque além do mais foi o Fernando Pessoa quem escreveu. E porque as frases aparecem sempre quando a gente mais precisa delas. Pode ser num livro, num jornal, numa revista. Num papelzinho escondido dentro do biscoito chinês. Numa folha rasgada de um caderno pautado. Ou num guardanapo trazido pelo vento. Quando não vem assim, por acaso, acaba vindo como pensamento, na cabeça da gente. Como se fosse uma lembrança. Quando eu estava na oitava série, lá no Alegrete, o professor de literatura nos fez decorar uns versos que diziam assim: “O poeta é um fingidor / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente.” Também foi o Pessoa quem escreveu e eu gostei. Me lembrei dos versos quando o Tonhão me comia atrás do trailer. Era a minha primeira vez. Ele me arrombando e eu de quatro, agüentando no osso e pensando: “O poeta é um fingidor / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente.” Era madrugada de quarta-feira de cinzas. A cidade meio vazia. O seu Valdo já tinha me dito para não dar conversa pro Tonhão, que ele tinha fama de ser perigoso. Diziam que ele tinha morte nas costas. Mas o seu Valdo era apenas meu chefe. Não era meu dono. Ele tinha ido se divertir em Porto Alegre e me deixado lá trabalhando em pleno carnaval. Ai, por favor! Me poupe! Eu, heim!? Naquele tédio de vidinha, e ainda por cima trabalhando como chapista. Agora, me diz, quem na cidade vai passar o carnaval comendo xis num trailer? Ah, mas no Alegrete, e naquela época, as pessoas iam para lá comer xis em pleno carnaval. E tomar cerveja e quebrar garrafas. E eu ali no meio daquele povo todo, fritando ovo, carne, coração, bacon. Depois socando tudo no pão e prensando. E naquele dia ainda tive que ficar servindo, cobrando, dando troco. Nos dias normais o seu Valdo era quem fazia isso. Mas no carnaval daquele ano eu tive que fazer o meu trabalho e o dele. E ele ainda queria que eu não desse papo pro Tonhão. O Tonhão gostoso, lindo, loiro, com uma cicatriz bem no meio da cara. Me dava um tesão olhar para ele, que eu mal podia parar de olhar. E ao mesmo tempo tinha medo. Acontece que ele soube chegar, foi chegando, e naquele dia eu não dei só papo pra ele. Eu dei foi tudo: dei papo, dei xis e dei até o ó, depois que todo mundo já tinha ido embora. Ele ainda gozou na minha cara e depois me bateu. Me deixou com um olho roxo. Pegou todo o dinheiro que tinha no caixa e me deu a metade, dizendo que era melhor eu sair da cidade por uns tempos até ele esquecer que eu existia, prometendo me caçar se eu dissesse o que ele tinha feito. Disse que acabava comigo e também matava toda a minha família. Eu fico impressionada com a falta de ser-humanismo das pessoas. Depois que ele foi embora eu me olhei em um espelho pequeno, desses com borda de plástico laranja, que o seu Valdo tinha pregado em uma parede mais escondida do trailer. E me deu um desespero, uma vontade de sair, mesmo, dali. Porque eu não tinha como explicar o olho inchado, o sangue escorrendo pelo rosto. Não tinha como explicar o dinheiro que faltava no caixa. E se eu explicasse o Tonhão voltava pra me matar. Foi assim que eu caminhei até a rodoviária e usei uma parte do dinheiro pra comprar uma passagem e fugir pra Porto Alegre. Chegando lá, já de cabeça feita, tive que ir à luta, fazer a vida.

“Triste é partir sem data para regressar.” Preciso decorar estas frases da citação pra dizer depois pras mana da Getúlio com a Barbedo, quando elas me perguntarem como foi a viagem. Eu digo essas coisas e elas ficam rindo, que só falta rolar no chão. Elas dizem: olha, Katha, me diz da onde é que tu tira essas loucurinha, heim? Aí eu vou olhar e vou dizer: Fernando Pessoa. Pode ter certeza que elas vão querer saber quem é o bofe, que carro ele tem, qual é a placa, o que ele pede para fazer, se tem acué. E eu vou responder o quê? Chamar de burra? De ignorante? Depois uma fica com raiva e vem me dar uma navalhada na cara. Melhor dizer que não, que é um poeta português. Aí elas vão ficar passadas comigo. Vão ficar dizendo que eu sou exótica, viajada. Por isso que as mana me chamam de professora. Porque eu nasci pra brilhar, viu, meu bem? Não pra morrer dentro de um trailer no Alegrete.

Por isso, foi bom eu ter ido embora. Foi bom sim eu ter partido em um ônibus igual a esse. Apesar de ter sido triste, como agora. Todos dentro do ônibus parecem tristes e nem sei se é por chegar ou por partir. Ou se estão só cansados da viagem. Mas dá quase no mesmo. Não interessa. Eu também estou cansada de tudo. Eu, que estou voltando mas também estou partindo, de uma forma ou de outra. O que importa é que eu estou aqui no ônibus, sentada e lendo essa revista na página das citações, porque o resto eu já li tudo. Eu parei nessa frase que leio e releio toda hora. “Ainda mais triste é o regresso, quando não há ninguém à espera.” É uma frase bonita e triste. Ainda mais pra mim. Ainda mais agora, que estou voltando pro Alegrete e não sei se ainda posso encontrar alguém me esperando.

Talvez eles ainda esperem por Sebastião. Mas ele não vem mais. Agora há pouco o ônibus parou em uma lanchonete na beira da estrada. Eu desci, usei o banheiro e pedi um pastel de queijo. Sentada ali, perto da janela, sozinha, eu olhava os carros passando e levantando o pó no asfalto. Dei uma mordida no pastel e senti o gosto da gordura. Um pastel quase vazio por dentro. E me veio uma tristeza muito grande, porque eu pensava nessa citação, nessa última parte que diz assim: “E acontece que a vida é uma grande viagem, para a qual não se tem data marcada, na qual a esperança de que alguém fique à espera acaba sendo uma esperança só. Ou a desesperança de quem não pôde esperar mais.” Eu pensava na frase e lembrava da minha mãe, do meu pai, dos meus irmãos. Se fosse nos velhos tempos a esta hora eles deviam estar na missa. Mas será que ainda rezavam por mim, que ainda sentiam a minha falta?

Não, acho que não. Porque, se fosse assim, onde estariam as rezas, então? Onde estava Deus que não fazia nada enquanto eu era atacada na noite? Enquanto os meninos da vizinhança esvaziavam o extintor de incêndio dos carros em mim e depois me batiam nos seios, no rosto? Enquanto me chutavam a cara e me arrebentavam toda? Onde é que está Deus nas vezes em que a vizinha do ponto atira um balde de água gelada em cima de mim no inverno e fica gritando, me ofendendo, espantando a minha freguesia? Quando ela faz isso eu sempre tenho que sair correndo, senão a polícia vem e me dá uma coça. Uma vez eles até me levaram para um descampado e me comeram sem pagar nada. Foi bom, mas trabalho é trabalho, mesmo quando é divertido. E naquele dia eu voltei pra casa sem um tostão. Na cozinha só tinha pipoca, e foi o que eu comi, no dia seguinte. Podia ter feito os três programas daquela noite e aí tinha dado para comprar carne. Eu tinha saído com minha saia mais curta, só no capricho e na produção. E onde estava Deus? No milho da pipoca? Só se for. Pois que se exploda! Onde é que estavam as rezas quando eu andava sozinha pela noite esperando por um programa na Getúlio Vargas, por alguém que não tinha marcado hora ou lugar para me encontrar? Onde estava Deus na semana passada, quando, depois do exame de sangue, eu soube que estava com a maldita, naquela sala do posto de saúde?

Quem sabe ainda rezam por Sebastião, mas ele não volta mais. Quem sabe até eu mesma quisesse reencontrá-lo, para estar novamente entre os meus, pra me sentir em casa. Depois de tantos anos, depois de tantas mudanças de ponto e de pele. Depois tomar na cara, de cheirar a fumaça dos canos de descarga, de beber o veneno das ruas, injetá-lo na veia: foi isso o que me tornei. Está no meu sangue. Não sei se fui eu mesma que me fiz ou se o mundo me fez assim. É por isso que Sebastião não vem mais. Porque agora sou só eu, aqui, dentro deste corpo. Dentro deste ônibus em um final de tarde. De volta ao Alegrete, ao ponto de partida.

O sol se põe e não tem mais luz para ler a revista. Arranco a página das citações e guardo na minha bolsa. Fico olhando pela janela e reconhecendo a paisagem, contando as árvores que cresceram, as árvores que cortaram. Contando as batidas do meu coração. Tum-tum, tum-tum. Contando que ainda haja alguém à minha espera. Quantos anos desde que parti sem dar notícias? Sem notícias da mãe, do pai, dos irmãos? Vivendo como uma perdida, na escuridão, escondendo-me pelas sombras da noite. Como alguém que nunca precisasse de colo, sim, embora procurasse apenas por alguém que me amasse, mas era no lugar errado. Alguém que agora se vê diante da realidade e ela é dura demais. Ela é mais dura do que a dureza das ruas.

O ônibus estaciona em um dos boxes da rodoviária. Coloco meu casaco, apóio a alça da minha bolsa no ombro esquerdo e vou saindo junto com os demais passageiros. Em cima da porta tem um espelho, onde me olho sem reconhecer ali o menino que partiu. Ando pelas ruas e cruzo com as pessoas da cidade. Reconheço algumas delas, mas elas não me reconhecem. Apenas me olham de cima a baixo. Algumas riem. Esperam eu passar e fazem comentários. Olha o travesti. Que nojo. Que ridículo. Pelo amor de Deus. Eu que peço pelo amor de Deus, mas em silêncio. E continuo andando pelas ruas com o rosto erguido e sem responder para ninguém. A vida me ensinou que cada um paga o preço por ser aquilo que é.

Atravesso a praça e chego na igreja. A missa está terminando. As pessoas saem. Entre elas está minha mãe, acompanhada pelo meu irmão mais novo. Está velhinha. A vida judiou muito dela. Sinto pena e amor. Sinto as pernas tremendo, os joelhos moles. Sinto vontade de abraçá-los e dizer que estou de volta em casa. Queria perguntar pelo pai e pelos outros lá em casa. Mas eles passam sem levantar o rosto. Não me reconhecem mais. Essas pessoas que eu abandonei por necessidade e por vergonha. Esses que têm nas veias o mesmo sangue que o meu, mas sem o veneno. A mãe interrompe o passo. Parece que vai olhar para trás, como se tivesse esquecido alguma coisa. Depois continua andando. O meu irmão caçula a segura pelo braço oferecendo apoio, como se faz com os velhos. Sigo eles de longe no trajeto para casa. Mas não sei se devo voltar. Alguns caminhos não tem volta. Ou têm? Não sei.

Vou seguindo eles de longe. Abro a bolsa e pego de novo a página de revista. A página das citações. Leio a frase do Fernando Pessoa e sinto com o coração que ele estava certo.

A viagem de volta é triste quando não tem ninguém esperando por nós.

1 comentários:

Rudiran Messias disse...

• Este conto integrou o livro "103 que contam" (Nova Prova Editora, 2007), organização de Charles Kiefer.