tag:blogger.com,1999:blog-91535013579651344892024-02-07T13:23:49.640-03:00Versões preliminaresO Blog de Rudiran Messias.
Posts inspirados na literatura, na música, nas artes plásticas, no cinema.
Crônicas, ensaios e contos em processo de criação.Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.comBlogger74125tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-79568688828221405612010-01-12T17:35:00.000-02:002010-01-12T17:35:03.796-02:00Plasticircose [conto] - versão 2<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjci2tKxoy3IBKNJ3cVssLEJhbqnWH6Iq45iJaow-S1OD530NvBGN6SOaYbv0v4YRUMca8lMWoWDdKdJwBNKOf5qKVoMLW75iHHBmTg1CkFHVTqOT9u7O9zwc2ujVfuMDfvIh_ADg2ptMSo/s1600-h/scrapdestaqueconto.png" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjci2tKxoy3IBKNJ3cVssLEJhbqnWH6Iq45iJaow-S1OD530NvBGN6SOaYbv0v4YRUMca8lMWoWDdKdJwBNKOf5qKVoMLW75iHHBmTg1CkFHVTqOT9u7O9zwc2ujVfuMDfvIh_ADg2ptMSo/s200/scrapdestaqueconto.png" /></a></div>Abriu os olhos um segundo antes de o despertador tocar, sentindo a dor das feridas abertas no braço. 7:29. Os números em vermelho. Os dois pontos piscando entre eles, como os nódulos que latejavam.<br />
O alarme soou agudo e metálico no sistema de áudio do apartamento. 7:30. Apertou o botão em cima do relógio e o ruído cessou. A dor continuava.<br />
<a name='more'></a><br />
As caixas de som reproduziram as notas de piano e a voz de veludo negro de Nina Simone: "<i>There's a new world commin' / And it's just around the bend." <span class="Apple-style-span" style="font-style: normal;">O som da estação de rádio de alta-fidelidade era cristalino e brilhante como o holograma de Nina ao piano, com o merchandising da garrafa de scotch animada sobre o tampo com o slogan. Johnnie Walker Blue Label – put your blues out. <span class="Apple-style-span" style="font-style: normal;">A música continuava e p</span><span class="Apple-style-span" style="font-style: normal;">odia-se ouvir o ruído da agulha correndo pelo vinil e até os ruídos remotos da gravação original. Ela deixava todos esses recursos habilitados por padrão. Sentia que os sons originais tinham algo do velho romantismo. Deleite auditivo para começar bem o dia, enquanto levantava da cama e tomava banho. </span></span></i><br />
<br />
<i><span class="Apple-style-span" style="font-style: normal;">Deixou a água tépida correr pelo seu corpo com a solução emulsionante, que limpava os poros e fazia arderem as feridas, enquanto passava mentalmente as atividades do dia em revista.</span></i><br />
<br />
Havia coisas práticas para serem resolvidas. A despensa estava desprovida de enlatados, envelopes de sopa, pacotes de massa seca. Faltavam até biscoitos de água e sal. Tudo se fora ao longo do período de quarentena, durante o qual seu único contato físico com a rua tinha sido através dos entregadores, que agora estavam de greve. Ela acompanhava pela televisão os protestos e as passeatas de pessoas cobertas pelas máscaras anti-contágio, enquanto trabalhava no computador e enviava os projetos ao escritório pela internet. Ia retomando e concluindo cada um deles na medida em que conseguia energia suficiente para realizar cada tarefa, o que era cada vez mais difícil. Era assim para todos. Os entregadores na televisão pareciam tão prostrados quanto ela, apesar de estarem na rua, protestando dentro de seus escafandros. Um caos diante do palácio do governador, e parecia que a situação não tinha solução para breve. O número de infectados aumentava exponencialmente e as autoridades pareciam estar apenas tentando manter tudo sob controle.<br />
<br />
Ainda havia a dor: era como se os nódulos estivessem repuxando a pele de seu braço, tirando sua concentração e deixando-a cansada logo de manhã. Enquanto isso, os prazos dos projetos continuavam correndo. Ninguém queria saber se ela estava doente ou sã. Eram muitos contratos e multas em jogo, de forma que ou ela se restabelecia, ou seria substituída. Os trabalhos acumulados, os e-mails abarrotando sua caixa postal com cobranças e ameaças de demissão ou redução proporcional nas comissões. Ela não podia ficar doente e, além disso, desempregada. Precisava fazer algo a respeito. Lutar, por-se de pé.<br />
<br />
Quanto aos nódulos, que iam crescendo às custas de sua própria carne, esses ela não podia evitar – tinha que escondê-los e agüentar a dor de cada um deles. Ela ainda podia, apesar das dores terríveis, perfurar ou cortar a própria carne e ir tirando os caroços menores e mais contagiosos, para queimá-los com álcool em uma vasilha, conforme orientações das autoridades de saúde. Começava com um pequeno corte e os tirava com a pinça, como balas de revolver. Depois, via-os derretendo no fogo e perdendo seu tom de pele até ficarem escuros como carvão, exalando cheiro e fumaça preta de plástico queimado. O procedimento deixava feridas em sua pele, que precisavam ser tratadas diariamente.<br />
<br />
Mas contra o vazio de seu estômago, contra isso ela podia lutar. Pelo menos enquanto os caroços não se multiplicassem e se alastrassem até a mão ou o pescoço, ficando visíveis. Para quitar esse problema, bastava uma ida ao mercado, apesar dos riscos que a excursão envolvia – e sair de casa foi uma decisão bastante fácil. Natural, até. Era isso ou apodrecer, esperando para ver se morreria de fome ou se os nódulos carcomiam sua carne antes. Tomou o anti-inflamatório e o analgésico, terminou os curativos e vestiu o casaco de mangas compridas. Apesar do calor, precisava esconder as marcas nos braços. Colocou também a máscara anti-contágio, enquanto o gato se enrolava em suas pernas, ronronado. Acariciou sua cabeça e sentiu que ele também já estava tomado de cistos plásticos. Depois bateu a porta de casa, fazendo força para pensar que era um dia como os de antigamente, sem doença ou dores, sem nódulos, apenas com os problemas do dia-a-dia que se inventavam e que podiam ser levados com a barriga.<br />
<br />
Precisava ir ao supermercado e à farmácia, era só o que importava naquele dia ensolarado. As dores no estômago de tomar tantos medicamentos, ou mesmo as feridas, se tornavam eventualidades diante da necessidade prática, o que era bom: quanto melhor conseguisse acreditar que se sentia bem, melhor representaria para os outros e isso a manteria a salvo. Mas, mesmo com o céu limpo, era difícil imaginar que seria um dia como os de antes da doença, quando as feridas fechavam ao invés de se multiplicarem tão rápido. Em um dia normal ela não estaria usando a máscara pesada de borracha e acrílico, cujo filtro acoplado era tão sólido e pesado que se tornava difícil caminhar com a cabeça ereta.<br />
<br />
Na rua quase vazia, as pessoas que conseguia ver também usavam máscaras iguais. A cada duas quadras, os agentes da defesa epidemiológica, vestidos com escafandros anti-contágio, controlavam o trânsito de pedestres e veículos, parando uma pessoa ou outra aleatoriamente, em esquema de blitze. Faziam perguntas e davam conselhos. Os cães de rua eram exterminados pelos jatos de espuma cáustica paralisante lançados de dentro dos cilindros que eles traziam às costas. Todos já eram considerados previamente contaminados. Viu um desses cãezinhos de rua serem sacrificados em uma esquina lá adiante e lembrou de sua cadelinha Laleshka, que enterrara semanas antes. Lembrou do pingente dourado com seu nome, que ela levava na coleira, e sentiu tanta dó que pensou em intervir. Decidiu ser previdente e atravessou a rua para que não a parassem. Quando chegou mais perto, uma patrulha estacionava para recolher os dejetos sólidos e líquidos do sacrifício químico.<br />
<br />
Apressou o passo e pensou como eram loucos aqueles tempos. Na época de seus avós, as doenças mais contagiosas levavam ao menos uns seis meses para se alastrarem mundo afora. Eram gripes asiáticas, gripes aviárias e suínas, gripes H1N1. As coisas foram ficando mais sérias e agora os males eram muito maiores e mais catastróficos. Não tinham origem viral ou geográfica ou animal. Tampouco siglas. Eram de ordem residual e inorgânica. Algumas eram inventadas em laboratórios, e tinham até antídotos com valor já estipulado antes mesmo de cruzarem as fronteiras dos países onde haviam surgido. Foi assim com o silicatismo, com os males de transgenia, com a síndrome metalúrica. O advento desses males logo foi seguido pelos anúncios de cura e preços para a salvação, dando origem a um mercado intitulado pela imprensa como de "consumo-ou-morte". Com a doença nova era diferente. Parecia que algo saíra do controle. Falava-se em políticas eugênicas e teorias conspiratórias envolvendo governos e indústrias farmacêuticas, mas a plasticircose atingia todas a raças, etnias e classes sociais. Não havia a cura ou preço para a cura.<br />
<br />
Chegando ao mercado, alarmou-se com tudo. Os funcionários usavam escafandros parecidos com os dos agentes do controle epidemiológico, só faltavam os cilindros de espuma. Os preços eram absurdamente altos, e para diversos produtos não havia variedade de marcas disponíveis. Também não queria perder muito tempo se preocupando, o importante era comprar o que precisava e concentrar-se para controlar as dores que já começavam a latejar pelo braço – nas feridas, nos tecidos, na carne corroída pelos nódulos. Mas mal enchera o carrinho e já sentia um cansaço no corpo todo, como se estivesse prestes a desabar.<br />
<br />
Qualquer esgar ou gemido de dor poderiam ser flagrantes. Havia a tensão de que alguém percebesse sua dor ou se desse conta de que ela estava contaminada, e aquilo poderia ser o seu fim. Os funcionários tocariam os alarmes e o supermercado seria invadido pelos agentes, que a levariam para a quarentena pública, de onde ninguém saía vivo. Diziam no noticiário que as pessoas eram recolhidas para tratamento, mas nas ruas todos comentavam que, na verdade, todos eram abandonados nesses lugares para morrer. Ela precisava se cuidar o tempo todo, principalmente quando pegava um produto em uma prateleira mais elevada. Se a manga do casaco não deslizasse, deixaria as feridas de seu braço à mostra. Lembrou dos desafortunados, nos quais a doença se desenvolvera diretamente no rosto, nas mãos, em membros que ficavam à vista e acarretavam perda de mobilidade, ou em órgãos que tinham suas funções logo prejudicadas. Para eles a morte era rápida e certa, se não pela doença, pelas mãos dos sadios que desejavam exterminar o mal.<br />
<br />
Quando chegou ao caixa, já sentia que o efeito dos analgésicos estava passando. Ainda não era propriamente a dor forte e difícil de disfarçar. Antes, era um latejar mais intenso, umas pequenas pontadas faziam com que se sentisse como uma minúscula boneca vodu. E era preciso ficar firme por algum tempo, ainda. A fila do mercado estava comprida e demorada. O que, por si só, já a deixaria aflita. Se não desistia e deixava todas as compras ali era porque realmente precisava abastecer a despensa. Pensou que devia ter ido antes à farmácia, mas não imaginava encontrar tanta gente dentro do supermercado, com as ruas tão vazias. Tomara a última dose de analgésicos logo antes de sair de casa mas o tempo passara voando e o efeito dos analgésicos era cada vez mais breve. Contemporizou consigo mesma que a farmácia era a um passo dali. Chegaria lá e tomaria mais um comprimido assim que a atendente lhe entregasse os remédios que pedisse, antes mesmo de pagar.<br />
<br />
Logo atrás dela, dois rapazes não paravam de tagarelar. Pelo vocabulário, deviam ser estudantes de direito, que estavam agora prolongando uma discussão iniciada nos bancos universitários. Falavam com máxima propriedade e termos técnicos sobre a nova doença, assunto onipresente em todas as rodas: nas mesas de bar, no rádio, na televisão. Discutiam sobre o direito dos infectados e dos sãos, do contágio pelo ar, da privação de liberdade, da pena de morte, do horror. Concordavam, discordavam. Um deles parecia mais cauteloso e compreensivo em seus comentários, lembrando que os infectados cumpriam quarentena em suas casas e eram ajudados por parentes sadios. O outro rebatia, afirmando que nem todos os infectados tinham familiares – ainda mais que estivessem sãos. A virulência furiosa da doença chegava em uma casa e ali se instalava em todos os seus moradores. Os contaminados estavam pelas ruas, andando entre os normais enquanto suas vísceras, pele e ossos se mutavam descontroladamente. Falavam no estado de epidemia e nas possibilidades de cura.<br />
<br />
A caixa do supermercado começou a registrar os produtos e a embalá-los. Ela pensou como aquela moça, dentro da roupa de astronauta, empacotando as compras em sacos de papel pardo, tinha algo de irônico, mesmo que não fosse intencional. O absurdo de tudo era a própria situação: justo quando o silício, os plásticos e os metais já estavam dentro dos corpos das pessoas, fazendo a festa na estrutura de suas células, na corrente sangüínea, só então tinham vindo as redes varejistas e as indústrias a se importar de verdade com a ecologia. Era tarde demais para se adotar posturas ecológicas e politicamente corretas. O jogo já tinha virado e, de acordo com as novas regras, apenas o artifício poderia vencer o mal. Era preciso lutar contra os inimigos que haviam sido criados com as mesmas armas de que dispunham. Só o metal podia contra o metal, o polímero contra o polímero, o veneno contra o veneno. Era guerra, e guerra sempre seria guerra, fosse entre nações ou no nível celular.<br />
<br />
Quando a moça disse o preço ela aproximou sua mão do leitor. A dor estava maior, fazia com que tremesse. Com um breve apito e a mensagem na tela, o sistema de cobrança acusou erro e ela fez uma nova tentativa, respirando fundo para que sua mão não oscilasse tanto. O computador emitiu um apito breve e a luz verde piscou, indicando que a transação estava aprovada. Aliviou-se com a confirmação da compra. Agradeceu a Deus por ainda ter crédito e por ter conseguido se controlar o suficiente para não gerar desconfianças. Mas olhou para o lado e percebeu que os garotos estavam quietos de repente. Olhavam para ela de cima a baixo com os olhos, embora disfarçassem a posição da cabeça. Observou que eles tinham vindo ao mercado apenas para comprar maços de cigarro medicinais com efeito bronco-dilatador, que eram a última moda entre os jovens. Marca Lungs'. Eles vinham em diversos sabores e não havia quem não os fumasse. Na propaganda holográfica da boca de caixa, uma menina indiana tragava fundo e parecia respirar aliviada, o que pareceu hipnotizá-la por alguns breves instantes.<br />
<br />
Agradeceu à mulher do caixa, abraçou as sacolas e saiu do supermercado, com o passo acelerado para chegar o quanto antes à farmácia, que ficava a duas quadras dali. Ia pensando no quanto se arriscara, imaginando o que poderia acontecer se os estudantes tivessem visto as marcas em seus braços, e chegou a se virar para ver se já tinham saído. Eles estavam caminhando na mesma direção dela, conversando, mas sem deixar de olhar para a frente. Apressou o passo, sentindo as dores aumentarem na medida em que aumentava o ritmo da caminhada. Sentia sua pulsação cada vez mais acelerada, a boca seca, o suor nas mãos. Todas os sintomas do medo a cobriam enquanto sua caminhada se transformava gradualmente em fuga. Era algo incontrolável, o próprio corpo tomando conta da situação, embora ela procurasse dosar a velocidade dos passos para ganhar distância e afastar-se dos garotos, de preferência sem que eles percebessem. Porque não tinha certeza, não sabia se eles estavam mesmo tentando segui-la. Também não queria deixar que as compras caíssem no chão.<br />
<br />
Olhou mais uma vez para trás e percebeu que eles estavam ainda mais próximos. Também haviam apressado o passo e olhavam para ela, sem dúvida. Estava quase chegando à farmácia, entraria ali e talvez se sentisse mais segura. Bastava se concentrar, agüentar a dor o mais bravamente que conseguisse. Pediria os remédios e tomaria alguns analgésicos de quinta geração que a fariam sentir-se revigorada. Os comprimidos eram mágicos nos primeiros minutos após a ingestão.<br />
<br />
Estava a poucos passos da farmácia, quando foi alcançada e praticamente cercada pelos dois. Eles faziam com que se sentisse intimidada. Havia algo de manifesto, uma raiva intencional na postura e no olhar dos dois. Olhos de predadores. Não, olhos de assassinos. Um ar vencedor, de alívio e recompensa, como o da menina no holograma da propaganda de cigarros. Ela tentava não aparentar medo, mas estava absolutamente terrificada, a respiração curta, ofegante. Já não sabia se queriam assaltá-la ou violentá-la. Talvez nem fossem estudantes, no final das contas.<br />
<br />
Então o mais nervoso deles falou. Isso fez com que se sentisse ainda mais angustiada: o que parecia mais violento era o que vinha falar-lhe primeiro, justamente o que tinha olhos mais negros e inescrutáveis. Ofereceu ajuda para levar suas compras, mas de uma maneira tão firme que a fez sentir um calafrio. Era a certeza de que estavam ali para lhe fazer o mal. Procurou não olhá-los diretamente nos olhos e agradeceu. Continuou andando em passo acelerado, mas eles ainda a acompanhavam. Decidiu passar reto pela farmácia e ir direto para casa. Seria melhor que eles não desconfiassem que ela estava doente. Se eles continuassem caminhando na mesma direção que ela por muito mais tempo, tentaria embarcar em um táxi, virar em uma esquina para ver se eles seguiam por outro caminho. Mas eles não desistiam, eram insistentes. Diziam que faziam questão de ajudar. O mais agressivo era quem mais falava e o outro só concordava, reforçava o que ele tinha dito. Não parecia haver entre eles mais nenhum ponto de discordância. Ela dizia que não, agora tentando ser um pouco mais firme, porque se sentia obrigada a reagir. Precisava fazê-los entender que desejava ficar sozinha, que lutaria se fosse preciso.<br />
<br />
Eles continuaram escoltando-a por alguns metros, até um ponto onde estavam passando por um beco entre dois prédios. Um beco abarrotado de lixo por todos os lados, para onde eles a empurraram enquanto iam arrancando de seus braços as sacolas de papel pardo. Mas eles não fugiram com as sacolas, eles largaram as compras e a empurraram. Ela caiu no chão, entre os produtos que comprara e perto dos sacos de lixo. Durante a queda sentiu as palmas das mãos se escarificando no contato com o chão de concreto. Quis gritar, mas não tinha fôlego. Era como se os gritos sufocassem em sua garganta. Um deles já segurava o seus braços e pressionava sua cabeça no chão com um joelho. O outro vinha por cima e começava a despi-la. Agora o que segurava os braços colocava um pedaço de pano em sua boca e o outro tirava seu casaco. Estavam prestes a currá-la ali mesmo, quando enfim viram as feridas.<br />
<br />
De repente ela estava no comando. Ela olhava para eles com olhos de maldade, olhos de vingança. Sabia que o menor contato direto que eles tivessem com as feridas os contaminaria, não importava que usassem máscaras. Foi então que o seu pulmão se encheu de ar e ela gritou o mais alto que pode. Era um grito de todas as sirenes, que não gritava palavra alguma, apenas vogal. Um grito terrível e básico, instintivo. Tão alto que se fez ouvir por dois agentes de segurança epidemiológica, que vieram em seu socorro.<br />
<br />
Os garotos tentaram sair do beco, mas já estavam acuados pelos agentes, enquanto ela tentava se recompor. Um dos agentes ordenou ao outro que ligasse para a polícia. Os garotos tentavam se eximir de culpa, diziam que não era o que parecia, enquanto o agente mandava que ficassem quietos, com o borrifador de espuma apontado para eles. Os dois tentavam falar mesmo assim, mas apenas deixavam-no mais nervoso e ele gritava para que calassem a boca. Eles foram recuando mais para o fundo do beco, acuados pelo agente, e se aproximando cada vez mais dela. Agora estavam quietos e com as mãos para cima, afastando-se um do outro enquanto o agente alternava a mira do jato de espuma entre eles. Quando se aproximaram mais, ela já estava com o casaco na mão, pronto para vestir.<br />
<br />
Foi então que um dos garotos pediu ao agente para que olhasse para o braço dela, justo na hora em que o outro agente chegava, acompanhado pelos policiais. Quando eles estavam entrando no beco, o agente que tinha ficado ali controlando os garotos deu voz de contágio. Os policiais ficaram afastados e o outro agente se aproximou. Os dois homens vestidos de astronauta apontaram as pistolas para ela e luzes vermelhas na ponta do borrifador começaram a piscar.<br />
<br />
O corpo da mulher foi inteiramente coberto com a espuma de soda cáustica paralisante. Enquanto derretia, ela lembrou dos projetos que tinha por entregar e do gato que ficara trancado dentro de sua casa, com a gravação de Nina Simone programada no <i>repeat</i>:<i> "There's a new world commin' / <span class="Apple-style-span" style="font-style: normal;"><i>This one is commin' to an end".</i> Nada disso tinha mais importância, agora que seus órgãos internos e suas células nervosas derretiam como o sal derrete as lesmas. Pelo acrílico da máscara, ela via os garotos, os policiais, os agentes do controle epidemiológico, e por fim a espuma que cobriu até sua cabeça. O contato abrasivo da espuma parecia derreter tudo, cobrindo-a com um manto quente e anestésico. Não havia mais dor, não havia mais nada.</span></i><div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-26034973036555781302009-12-28T15:13:00.002-02:002009-12-28T15:15:30.578-02:00Os 120 dias de Sodoma ou A escola da libertinagem<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjN67_W25u1VD2qy9EkyVvIBMNTvQad7S7JHZLm9i9Z_jOSwUuJzngoGheoVNa3NCsYBcLDWY8_KFDALeoIZL1I-3poxL_KaFDNs53t5uRttYfQFmT1763fA4VUeaxDr09z-qS9LDhV3ZJS/s1600-h/escolalibertinagem.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjN67_W25u1VD2qy9EkyVvIBMNTvQad7S7JHZLm9i9Z_jOSwUuJzngoGheoVNa3NCsYBcLDWY8_KFDALeoIZL1I-3poxL_KaFDNs53t5uRttYfQFmT1763fA4VUeaxDr09z-qS9LDhV3ZJS/s200/escolalibertinagem.jpg" /></a></div>Ao escrever <b><i>120 dias de Sodoma<span style="font-weight: normal;"> <span style="font-style: normal;">ou </span><b>A escola da libertinagem</b><span style="font-style: normal;"> ao longo de anos incertos na virada do século XVIII para o séc. XIX, com as tintas furiosas da loucura, Marquês de Sade compôs o que ainda hoje talvez seja o mais completo tratado enciclopédico sobre o universo das perversões sexuais. </span></span></i></b><br />
<br />
<b><i><span style="font-weight: normal;"><span style="font-style: normal;">O Marquês morreu antes de concluir seus manuscritos e acreditando que eles tinham sido perdidos. Hoje, se estivesse vivo, talvez fosse o único ser humano capaz de concluí-lo, e debocharia regiamente de nossa sociedade e suas limitações hipócritas em termos de sexo. </span></span></i></b><br />
<b><i></i></b><br />
<b><i><a name='more'></a></i></b><br />
O livro é composto de personagens absolutamente planos, que mais parecem<i> stencils</i> de perversões sexuais encarnadas. O volume inicia com um inventário de cada um deles, dos grupos que formam e das perversões a serem desenvolvidas ao longo da narrativa.<br />
<br />
Dividido em 4 partes, relata 120 dias, seiscentas paixões – 4 meses de libertinagem, 4 classes de vícios. A cada dia, 5 modalidades, somando 150 por mês.<br />
<br />
Os personagens em números: 7 súditos; 8 meninos; 8 meninas; 8 fodedores; 4 criadas; 6 cozinheiras; 4 esposas; 4 prostitutas anciâs (narradoras). Todos liderados pelos 4 senhores (personagens principais) – Curval, Durcet, Blangis e o Bispo. Total: 46 pessoas vivendo dias de sexo desenfreado e livre de quaisquer censuras da sociedade.<br />
<br />
Ao longo dos quatro meses que abrangem a narrativa, as quatro prostitutas se revezam para contar todas as histórias de suas vidas pregressas, abordando virtualmente todos os tipos de sexo possíveis e imagináveis. Não há nada que a mente mais doentia possa imaginar hoje que já não esteja devidamente recenseado na narrativa.<br />
<br />
O volume todo tem um jeito de obra em progresso, especialmente a última parte, onde o autor acaba cada capítulo com observações para reescrita posterior, apontando onde falhou e onde deve melhorar o texto. Esta parte, percebe-se que não foi devidamente concluída. No início do volume também há um plano para desenvolvimento do mesmo, que é seguido à risca.<br />
<br />
Pode-se perceber que o Marquês tinha método para escrever, e tinha toda a obra previamente planejada antes de colocá-la no papel. Trata-se de um ótimo objeto para algum estudo sobre composição de escrita criativa. Além de um ótimo antídoto para leitores que ainda são "virgenzinhas" das letras.<br />
<br />
Antes de sair dizendo que um livro é chocante ou quer chocar, ou antes de querer escrever algo pretensamente transgressor, leia este e os outros livros do Marquês. Mas cuidado, essa leitura pode ser forte demais para pessoas que sofrem de doenças cardíacas e bloqueios sexuais. Ler <b><i>120 dias de Sodoma</i><span style="font-weight: normal;"> requer estômago reforçado e disposição para sublimar o conteúdo de suas páginas. Envolve, quem sabe, até a tentativa de se esquecer o que foi lido, em nome de algum prazer que se possa tirar do sexo após a leitura de algumas cenas repulsivas até para as mentes mais libertinas.</span></b><br />
<br />
A edição da Iluminuras é bastante interessante, com uma capa bonita e um ensaio de Eliane Robert Moraes (professora de estética e literatura) – que é bem-escrito e talvez pudesse ter sido mais aprofundado.<div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-37085161495902984072009-12-26T12:43:00.004-02:002009-12-26T12:46:55.245-02:00História do olho – Georges Bataille<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjNbGuy39CSOR4iFe27_2gDFast4w5ff2h0xUc41FFo_IELLn1gdhfJIyKKTTZrDTx1k2h7Z-yshCCJ_jLaDgGXQCV9FA-URImoyjHxtrTeg0wLjWhsItXfFb0VdAVz73Vh5_CsaIQKh7xu/s1600-h/historiadoolho.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjNbGuy39CSOR4iFe27_2gDFast4w5ff2h0xUc41FFo_IELLn1gdhfJIyKKTTZrDTx1k2h7Z-yshCCJ_jLaDgGXQCV9FA-URImoyjHxtrTeg0wLjWhsItXfFb0VdAVz73Vh5_CsaIQKh7xu/s200/historiadoolho.jpg" /></a></div>Este belíssimo clássico da literatura erótica foi escrito por Bataille em 1928, sob o pseudônimo <i>Lord Auch </i>durante uma terapia heterodoxa com Adrien Borel. O primeiro foi <i>W.–C.</i>, também escrito como "tema de casa" terapêutico, mas queimado pelo próprio autor (não pelo seu conteúdo libertino, mas pelo seu conteúdo e pensamentos demasiado filosóficos).<br />
<div><br />
</div><div>A novela acompanha as descobertas, feitos e extravagâncias sexuais do narrador e de sua amiga Simone, dois jovens que vivem magicamente à margem da censura adulta, percorrendo um cenário de sonhos. O livro faz da história libertina um veículo de revelações profundas sobre o corpo, a vida e a morte.</div><div><a name='more'></a><br />
A edição da CosacNaify é belíssima com sua capa dura e sobrecapa com uma linda fotografia artística de uma bunda em preto-e-branco. Tem ensaios assinados por Michel Leiris, Roland Barthes e Julio Cortázar. Mas deixou de fora as ilustrações das edições originais, que poderiam ter sido retomadas. A apresentação de Eliane Robert Moraes lança algumas luzes ineressantes sobre o livro e sobre o assunto do livro, abordando questões instigantes tais como o processo de despersonalização na relação sadomasoquista e a ligação entre esta narrativa de conteúdo sexual com o universo dos contos de fadas.<br />
</div><div><br />
</div><div>Há quem ainda se escandalize com a literatura erótica, pornográfica ou escatológica, mas este livro está aí para lembrar que nada do que se escreva hoje pode superar o que já foi escrito neste campo durante os séculos 19 e 20 por autores como Bataille ou mesmo Marquês de Sade e Leopold von Saacher Masoch – principalmente durante e após o advento da psicanálise.<br />
</div><div><br />
</div><div>"Literatura erótica", "literatura pornográfica" e "literatura escatológica", para quem já teve o prazer de passar pela verdadeira experiência transcendental que é ler esses autores, vêm a ser apenas rótulos tolos e reducionistas para um tipo de literatura rica, catártica e sem reservas.<br />
</div><div><br />
</div><div>A dimensão do sexo é uma das principais forças motrizes do ser humano, espanta muito que ainda seja tabu. O livro e a visão de Bataille, assim como a dimensão de sua obra e da arte erótica em geral na cultura francesa, mostra como esse povo consegue ser muito mais à frente dos brasileiros – que gostam de se dizer tão liberados sexualmente, mas que no fundo têm tantos preconceitos básicos na sexualidade. O brasileiro é um povo sexualizado, mas ainda preso a muitas amarras e preconceitos que impedem o livre exercício da vivência sexual plena.<br />
</div><div><br />
</div><div>O processo de escrita de <b><i>História do olho</i></b> trouxe a cura para Bataille através da catarse, e pode também trazer um pouco dessa cura para quem o lê.<br />
</div><div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-46127150729691034632009-12-10T20:09:00.000-02:002009-12-10T20:09:19.380-02:00Valsa patrimonial [miniconto]Separaram-se judicialmente e voltaram juntos para casa, onde foram felizes para sempre.<div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-48556904411741683762009-12-10T20:04:00.000-02:002009-12-10T20:04:53.456-02:00Cuidando de dona Carolina [conto]<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh57UfM5zxcDezOPkUCg-haI-CTtvchOY59c15sm14L3cJu8Yku014Oav26OaQVksy_rk0SiFo4ZZA6_6FtiodmbPJtXJSr6mBqkLsppiCvJbZxUB9lv64gaLPWz6x4fcCoFjz8S0XEdL2f/s1600-h/carolinascrap.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh57UfM5zxcDezOPkUCg-haI-CTtvchOY59c15sm14L3cJu8Yku014Oav26OaQVksy_rk0SiFo4ZZA6_6FtiodmbPJtXJSr6mBqkLsppiCvJbZxUB9lv64gaLPWz6x4fcCoFjz8S0XEdL2f/s200/carolinascrap.jpg" /></a></div>Perfuro com a agulha a pele frágil do braço de dona Carolina, que não oferece resistência alguma. Ela tem o olhar cada vez mais distante. É apenas o restinho de uma vida que ronca sobre a cama a intervalos cada vez mais curtos. A textura lembra um plástico fino e brilhoso que o tempo tivesse estendido sobre seu corpo. Aperto a seringa vagarosamente e vejo meu sangue negro escarlate se injetando e começando a desaparecer dentro de sua veia. Penso que desta vez deve ser o suficiente. Ela me olha agradecida e volta a dormir. Daria mais, se fosse preciso, para acabar com seu sofrimento. Para que ela tivesse mais da força de que precisa. <a name='more'></a><br />
Este é o meu trabalho: cuidar de idosos, de imobilizados e de doentes terminais. Também os estimulo a desabafar, e isso faz com que se sintam bem. Escuto as histórias de suas vidas, sejam elas longas ou curtas, interessantes ou comuns; suporto suas queixas, seus rancores, o mal-humor de quem já sabe que o fim está próximo; sou testemunha do desespero, da dor, do remorso de cada um deles. Limpo suas lágrimas e depois banho seus corpos, mudo suas fraldas, limpo suas fraldas. Administro a medicação a intervalos constantes e pré-determinados. Faço tudo o que for preciso na hora precisa. Troco seus sacos de urina e de fezes por outros novos, quando é o caso – e não tenho nojo, nem dos seres humanos como eles são, nem dos fluídos que excretam. Quem trabalha com isso precisa abstrair tudo e ver sobrar diante de si a pessoa mesma, paciente. Quando se conhece o ser humano, de uma forma ou de outra acabam se formando laços, mesmo quando se mantém o necessário distanciamento profissional. Hoje eu conheço a história de dona Carolina, essa senhora que criou os filhos praticamente sozinha, essa velhinha mais querida, cuja história só conheci porque vim para cá trabalhar como enfermeiro, na casa de seu filho.<br />
<br />
É assim o trabalho de pessoas como eu. Não falo pelos que batem ponto nos hospitais: eles têm a vida mais corrida e mal podem dar atenção de verdade aos que estão sob seus cuidados. Eles fazem plantão e dormem poucas horas por dia. Trabalham em dois ou três hospitais diferentes para poderem ganhar razoavelmente bem a vida e, no meio tempo, vêem coisas que fariam qualquer um ficar com os olhos e o coração duros. Acabam passando por várias donas Carolinas por dia e nunca chegam a conhecê-las de verdade. Entendem apenas suas dores do momento, seus laudos médicos, suas prescrições e seus remédios. E os vêem partir, vivos ou mortos, como se atuassem diante dos portões de embarque de um aeroporto – ambiente asséptico de chão brilhante, com faxineiras passando de lá para cá. Eles são a linha de frente no campo de batalha: não podem se deixar tocar assim, tão facilmente. Eu já trabalhei em hospitais, e voltei pra casa com um coração rochoso. Cansado, desgostoso da vida, depois de tantos e tantos plantões e escalas uns atrás dos outros. Por isso eu sei como é e não falo por eles. Só falo por mim e pelos pacientes dos quais tomo conta– eu também respondo por eles.<br />
<br />
Hoje atendo em domicílios e só de ouvir um gemido eu já sei quando o que eles sentem é mesmo dor. Eu conheço a dor e o sofrimento de perto. Sei quando ela é física, quando pode ser tratada com medicamentos. Eu sei quando o remédio é apropriado e quando posso aumentar a dose. A experiência me ensinou a reconhecer os sintomas. Odores corporais, ruídos, interjeições, esgares. Estudei a linguagem da dor e seus sinais. Quando chego em uma casa pela primeira vez, conheço pelo cheiro o tipo de paciente que vou atender e nunca me engano. Também não me nego, por mais difícil que seja. Inclusive os pacientes mais complicados, que outros recusariam ou dos quais só aceitariam dispondo de mais um técnico para dar apoio. Desses eu faço questão de tratar enquanto tiver forças. Eles são os meus queridos e prediletos. Sinto que só eu mesmo poderia cuidá-los. Quando olho em seus olhos pela primeira vez eu reconheço que são realmente os que mais precisam de mim. É uma espécie de dom que eu tenho, não sei, algo que veio no meu sangue, mesmo. Deve ter vindo. Foi assim com a dona Carolina e foi assim com todos os outros que vieram e se foram antes dela.<br />
<br />
Lembro do dia em que cheguei nesta casa, em um final de tarde e, antes mesmo que seu filho dissesse qualquer coisa, eu já sabia que o câncer comia a velha por dentro. A história não muda muito: Roberto me contou sobre os tratamentos em cima de tratamentos, sobre o longo período no qual os médicos haviam considerado que ela tivera remissão completa, sobre as recidivas e quimioterapias que a deixavam com a imunidade cada vez mais baixa. Disse que a mãe já tinha mais de 80 anos, as defesas do organismo já não eram mais essas coisas, sabe como é. Cedo ou tarde o corpo da gente se rende, ainda que de pouco em pouco. Era esse o estado de dona Carolina, e por isso fui contratado para tomar conta dela. Mesmo com o quadro precário de sua saúde, e eu disse sim para eles, a quem eu tinha sido indicado por amigos da família. Então ele me trouxe até este quarto e pude conhecer essa senhorinha ainda falante, embora já acamada. Tinha um olhar cansado, mas que ainda guardava o brilho de uma vivacidade quase teimosa. Ela sorriu e parecia já gostar de mim. Não se dera bem com as enfermeiras anteriores, com as quais brigava muito por coisas banais – ao ponto de fazê-las perderem a cabeça e pedirem demissão – e por isso eu havia sido chamado. Quando olhei bem para ela, senti que dona Carolina queria que eu a amasse como um filho e cuidasse dela. E é o que faço.<br />
<br />
Com o tempo conheci Anita, sua nora. Ela trabalha tanto quanto o marido, mesmo estando grávida do segundo filho. Virei parte da família e fico na casa todos os dias até que um deles chegue, o que só acontece lá pelas 20 horas. Durante o resto do dia ficamos apenas nós dois em casa, e assim ela já me contou praticamente toda a sua vida. Teve uma vida diária pacata, eu diria: casara cedo com o homem que fora seu marido até o fim de seus dias. A morte do marido ocorrera poucos anos antes, e desde então ela só fizera definhar mais e mais. Esse homem enfrentara com ela o câncer, vira com ela belas paisagens de países distantes e de cidades do interior. Juntos, construíram uma casa e uma família. Seu único defeito era ser mulherengo. Uma vida muito corriqueira, essa que ela me narrava. Exceto pelas viagens ao exterior, das quais lembrava com riqueza de detalhes. Eu a estimulei e explorei esses relatos, saboreando com ela cada textura, cada cheiro. Ouvindo suas histórias. Guiado por ela, fui à Veneza, andei nas gôndolas e senti o cheiro ruim da água de certos canais. Passei a mão nas paredes com pequenas rachaduras, tinta descascada e manchas deixadas pelas marés mais altas nos prédios antigos. Senti a ansiedade do movimento frenético de Picadilly Circus. Tive em minhas mãos a água cristalina de um lago canadense que, visto do alto de uma montanha no início do outono, tinha a perfeita cor azul-turquesa dada pelas algas durante o degelo. Senti no lombo a areia fina de Jericoacoara, trazida pelo vento forte, e nos pés a areia dura da praia do Cassino, depois da chuva – aquele visual retilíneo de praia sem fim.<br />
<br />
Com o tempo, acabamos ficando tão íntimos que suas histórias se acabaram e faz tempo que ela começou a se repetir. Eu as escutei mais de uma vez, queria lembrá-las, guardá-las comigo. Algumas delas, ouvi inúmeras vezes, com todas as suas possíveis variações. Eu as ouvi tantas vezes que poderia escrever um livro, e talvez o faça com a história de algum paciente, quando me contarem algo de realmente novo e singular. Quem sabe a coletânea dos melhores momentos de cada um deles. Talvez o livro venda bem e nesse dia eu deixarei de ser enfermeiro e me tornarei escritor. Enquanto isso, tenho a paciência de ficar escutando e escutando, como se estivesse lendo algum livro interessante. Como os livros que tenho lido agora que dona Carolina está realmente mal e não consegue mais falar. Eu leio tudo o que me cai nas mãos, e eles realmente tem uma vasta biblioteca na casa, de onde tomo emprestado um exemplar por vez sem que eles ao menos se dêem por conta. Já li dos mais diversos e tudo me interessa, fazer o quê? Ler e ler e ler. Leio até em voz alta para dona Carolina, e sei que ela gosta muito do que ouve. É curiosa como eu e também gosta de uma boa história. Ela não diz nada, mas eu sei que ela gosta porque vejo pelas expressões faciais. Hoje acabei de ler para ela um livro de contos de Poe e percebi que estava assustada.<br />
<br />
Aperto a ampola da seringa até o fundo e vejo meu sangue negro escarlate desaparecer por completo em sua veia. Sangue do bom, para lhe dar mais da força de que precisa. Puxo a seringa e pressiono um disco de algodão no lugar da punção. Se eu não fosse muito experiente, deixaria marcas visíveis. Ali ficará apenas uma pequena mancha que desaparecerá em meio às manchas da velhice. Um ponto final escarlate, escrito com tinta vermelha de escrever histórias. Minha amiga abre os olhos com dificuldade e me agradece sem palavras. Sinto que pode ser pela última vez, talvez não passe de hoje. No fundo deles vejo que eles mal olham para mim. Enxergam outras dimensões, têm outra profundidade, como se vissem o fim; como se enxergassem até o ponto onde nossas histórias têm o mesmo desfecho.<br />
<br />
Daria a ela um pouco mais de vida, se pudesse. Mas, além do meu sangue, eu só posso lhe dar um beijo de adeus. Digo baixinho em seu ouvido que está livre para ir embora quando quiser e ela adormece em meio a roncos moribundos. Guardo a seringa em minha pasta para descartar em um local seguro, recoloco o livro de Poe na estante e volto para o quarto. Dentro de alguns minutos eles devem chegar em casa. Falarei sobre a gravidade do quadro de saúde de dona Carolina e seu filho Roberto vai ficar ao lado dela, velando seu sono. Talvez chame o médico da família. Anita preparará o jantar e trará um prato para o marido. Insistirá para que ele coma. Tentarão alimentar dona Carolina pela última vez, mas ela deverá comer pouco. Ligarão para alguns parentes e amigos mais chegados, para que façam as últimas visitas. Cercada por essas pessoas, ela ainda conseguirá abrir os olhos mais uma vez, mas sem poder articular nenhuma palavra. Durante a madrugada haverá choro e desespero. A morte dos outros vai além da aceitação humana. No dia seguinte, o enterro será providenciado. As feridas ainda vão demorar para cicatrizar. Passado o período de luto, o quarto já estará sendo preparado para o neto que dona Carolina não chegará a conhecer.<br />
<br />
Quanto a mim, eu continuarei por aí, sendo indicado para trabalhar na casa de familiares e conhecidos. Dentro de duas semanas, no máximo, eu já estarei cuidando de outro paciente.<div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-35317773249288767672009-12-10T19:31:00.005-02:002009-12-26T11:28:38.512-02:00Bonequinho vodu ou O menino das agulhas [conto]<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiNHRmYx2nBf8048wO4ethXBDzTjJBbVtPxJfEtNN78KfaNP0ssy24VCnF3jXMZszBf1V6ZdNwnLQP6rBCxn0jWYAs5XxeJkLg_K4_phe8NntaA5b13eWi_du9K5K_N7eZioNnPGzCRy23I/s1600-h/vuduscrap.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiNHRmYx2nBf8048wO4ethXBDzTjJBbVtPxJfEtNN78KfaNP0ssy24VCnF3jXMZszBf1V6ZdNwnLQP6rBCxn0jWYAs5XxeJkLg_K4_phe8NntaA5b13eWi_du9K5K_N7eZioNnPGzCRy23I/s200/vuduscrap.jpg" /></a><br />
</div>Eu agüento tudo, meu filho. O isolamento, a servidão, a vergonha. E já fui longe demais, muito além do que imaginaria que me fosse possível. Tudo para cuidar bem de ti, em cima dessa cama, com o olhar amargo que me culpa pelo acidente; tudo para cuidar do teu pai, que acorda todos os dias, toma o café que eu preparei para ele, segue para o trabalho, tem uma vida normal e volta tarde para casa, com o olhar frio e sem desejo para mim.<br />
<a name='more'></a><br />
Bem que eu queria dizer que não o culpo. Eu até posso entendê-lo, fazendo muita força para tanto. Eu o entendi durante anos. Mas a culpa, a gente não se livra dela. A culpa se reflete nos olhos dos outros o tempo todo: ela volta para nos lembrar que a história seria diferente se não tivéssemos feito o que fizemos, e nos ensina que tudo tem uma conseqüência. Nos faz aprender na carne.<br />
<br />
Mas se ele não fosse tão sangüíneo, tão vivo, tão louco em sua gana de viver como se cada dia fosse o último. Quem sabe tu ainda serias uma criança normal, caminhando entre as outras no colégio. Eu também, estaria trabalhando, teria um círculo de amigos, um corpo saudável. Eu ainda seria uma mulher elegante, a mesma Susanna por quem teu pai se apaixonou um dia, aquela mulher linda que tinha força no olhar e não hesitou em sacrificar o próprio corpo para te colocar no mundo. Se ao menos ele não tivesse acelerado tanto, sempre correndo para tudo. Se tivesse feito como pedi e dirigisse mais devagar.<br />
<br />
Eu já tinha proposto de sairmos no dia seguinte, depois que a chuva passasse – mas ele sempre foi tão teimoso. Ele queria chegar na serra antes do entardecer para comemorarmos o nosso aniversário de casamento. Tinha reservas para o jantar no mesmo hotel de nossa noite de núpcias. Eu vi o céu nublado, a noite fechando, a pista molhada, os faróis do carro se refletindo no asfalto, tudo passando rápido. Eu até comentei com ele – mas o Augusto ficou tão irritado que começou a brigar comigo como sempre fazia e faz até hoje. Dava gritos dentro do carro. Não parava de falar e reclamar e discutir. Eu só respondia que estava com medo, e isso parecia que fazia acender nele um instinto sádico que pisava mais no acelerador, costurava entre os carros da rodovia e gritava comigo sem se importar contigo no banco de trás. Lembro dos teus olhinhos assustados, do teu rostinho culpado, como se nós estivéssemos brigando por tua causa. Lembro do teu choro sentido, eu tentando te acalmar.<br />
<br />
Naquele dia um caminhão bateu de frente em nossa família e começamos a nos despedaçar. Virou um destroço, uma montanha de lata amassada, de onde nos tiraram por milagre, cobertos de sangue e feridas, com tantas fraturas das quais ainda tentamos nos recuperar. Traumatismos por todo corpo, alguns sem cura. Por isso tu nos culpa, e eu te entendo. Quem não entende é ele, o teu pai. O Augusto uma hora estava no volante, nos guiando pelos perigos da noite à toda velocidade, noutro instante estávamos em mesas de cirurgia, e hoje ele anda pelo mundo enquanto nós ficamos presos dentro de casa, imóveis, tetraplégicos. Tu nesta cama e eu te servindo. Mal posso botar o pé para fora de casa. Se te deixo com uma enfermeira, sempre dás um jeito para que ela nunca volte, tratando-a mal e mostrando teu lado maligno, ofendendo-a do jeito que sabes fazer para ter certeza de que és odiado. Furioso, cruel como o teu pai. Saíste igualzinho a ele, e és para mim como ele sempre foi: impiedoso comigo. Mas um dia vais aprender. Farei tudo para que aprendas que o mal que fazemos volta para nós, do mesmo jeito que ensino agora para o teu pai. Porque é melhor que uma mãe ensine do que deixar a vida ensinar – a vida sabe ser ainda mais cruel do que tu, meu filho. Com toda essa maldade, ainda és ingênuo diante dela.<br />
<br />
Eu também aprendi com minha mãe, que aprendeu com a mãe dela. Um dia cheguei em casa e lá estavam as duas para me passar o conhecimento secreto de nossa linhagem. Diante delas, na mesa da cozinha, estavam os gravetos, o musgo, os retalhos de tecido, as penas e botões. A vovó me mostrou um dos bonecos e me disse: <i>"Mira, niña! Este es su muñeco vudú"</i>. O boneco mais parecia uma cruz, feito como a avó dela tinha ensinado. Recoberto com minhas roupas e tendo botões no lugar dos olhos e da boca. Na barriga, um bonequinho menor tinha retalhos da minha roupa e da roupa de teu pai. Foi assim que elas me passaram o poder e me ensinaram que a magia deve ser usada para o bem. <i>"El pasador azul es bueno para atraer el amor, el rojo trae el poder"</i>. Eu fiz sempre como elas diziam e tudo funcionou bem enquanto esteve sob meu controle. Casei com Augusto, nasceste sadio. Eu segui com minha mágica protetora, lembrando sempre do que me dissera vovó: <i>"Utiliza el vudú para su propio bien y por el bien de los que quieras, pero ten cuidado. Si usted usa para hacer el mal, devuelve el mal a usted aún más fuerte."</i><br />
<br />
Digo isso tudo para entenderes, para saberes com as coisas funcionam. Chegou a hora de eu te ensinar. Assim é o vodu e assim é a vida. O que a gente faz volta direitinho pra nós, meu querido. É a lei de ouro, e não haverá de ser diferente para o teu pai. Se ao menos ele entendesse um pouco da vida, se ele não fosse tão egoísta e não pensasse só nele. Poderia se importar um pouco, que fosse, comigo e contigo, com a nossa família. Mas ele só sabe nos botar de lado. Não vê que, quando me rejeita, também te nega. Mesmo eu tendo suportado tudo, até as mulheres que ele sempre arranjava na rua.<br />
<br />
Eu sempre fingi que não sabia de nada, porque sabia que ele ia voltar. Mas agora é diferente. O teu pai disse que vai embora de vez, e pensa que nós vamos nos contentar com a pensão que ele quer deixar. E quanto a todo o resto, tudo o que a gente construiu? Para o teu pai aquilo não vale mais nada. <i>Nós</i> não valemos mais nada. O fruto de nosso amor está aleijado, tetraplégico. Não anda mais, não tem vontade de viver. É assim que ele vê as coisas. Mas não. Isso é que não.<br />
<br />
Eu estou aqui para me certificar de que a justiça seja feita. Mesmo que as coisas não estejam mais sob controle, mesmo que a magia branda não possa mais nos ajudar. Por isso te sedei, para não ficares agitado, perguntando os porquês; por isso esse sono no meio da tarde; por isso te vesti, carne da nossa carne, com o pijama de teu pai; por isso esterilizei essas agulhas e pregos, e preparei a corda que vai prendê-lo junto a nós.<br />
<br />
Passo a corda ao redor da cama e começo a espetá-lo com as agulhas, para que ele sinta o que fez conosco. Vai doer mais em mim do que em ti, meu querido, mas eu sei que assim ele irá voltar para nós, onde quer que estivermos. Depois martelo os pregos nos pontos vitais. Furo seus olhos ferinos e vejo escorrer o sangue. Agora é tua hora de também ser forte, como a mamãe.<br />
<br />
Eu agüentei tudo, meu filho. A dor, a humilhação, o abandono. E já fui longe demais, muito além do que imaginaria que me fosse possível. Estou cansada, mas ainda irei aonde for para encontrá-los, por mais longe que seja. Lá, os olhares serão doces e as vozes serão brandas, os corpos serão belos e livres. Então poderemos caminhar juntos e seremos felizes.<div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-48506523788658856602009-12-07T18:23:00.000-02:002009-12-07T18:23:56.062-02:00Auto-ajuda para escritores<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhCEJT8pG_YPENOszSlfsmNoigZgEHj_3J_sarsf7BDM01YmdRU1n-v7vUCuiqoOhlW8q91Hagm_KVW4LMZVY8OlM2IEog45ZEHOnm01ugb6igCZbe6q8-y19W-q5SIiAHLSjSNqI3XLzz_/s1600-h/oficinadescritorestephenkosh.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhCEJT8pG_YPENOszSlfsmNoigZgEHj_3J_sarsf7BDM01YmdRU1n-v7vUCuiqoOhlW8q91Hagm_KVW4LMZVY8OlM2IEog45ZEHOnm01ugb6igCZbe6q8-y19W-q5SIiAHLSjSNqI3XLzz_/s200/oficinadescritorestephenkosh.jpg" /></a><br />
</div>Oficina de escritores, de Stephen Kock, é um livro delicioso voltado para escritores iniciantes ou escritores com qualquer tipo de bloqueio criativo. O volume reúne o melhor de diversos livros de entrevistas onde escritores falam de seus processos criativos.<br />
<a name='more'></a><br />
Trata-se de uma ótima porta de entrada para diversos assuntos relativos à escrita, como técnicas de desbloqueio, construção de enredo e história, construção de personagens, etc. Escrito por um escritor experiente e que também dá aulas de escrita criativa, o livro é um excelente workshop para escritores iniciantes e até mesmo para escritores mais experientes.<br />
<br />
Serve como um livro de auto-ajuda para quando nos sentimos bloqueados. Mas vai além disso. Aborda todos os assuntos sobre a escrita de uma forma relativamente concisa e, ao mesmo tempo, com muitos exemplos concretos de grandes escritores. Lança luzes sobre idéias que temos, proporciona um diálogo com escritores que já passaram por tudo o que passamos e ainda vamos passar, e até nos inspira a escrever novas histórias enquanto lemos os relatos de outros escritores contando sobre como tiveram a idéia inicial para escrever grandes obras.<br />
<br />
Esse diálogo que o livro traz muitas vezes não é possível nem no contato direto com grandes escritores. O conteúdo vem, muitas vezes, de palestras, entrevistas ou cartas, onde escritores revelam alguns segredos e dividem as mesmas angústias que qualquer outro escritor tem, teve e ainda vai ter durante o seu trabalho. São frases, respostas e conselhos bem pensados e refletidos, fruto de momentos de iluminação, e que podemos usar objetivamente.<br />
<br />
O livro também tem uma característica de ser objetivo e dar muitas dicas práticas. Também aponta para livros aprofundam um ou outro assunto e tem uma vasta bibliografia para ser estudada. Para integrar a biblioteca básica de qualquer escritor oficineiro.<div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-80217738037595189852009-12-07T17:39:00.001-02:002009-12-07T17:41:57.560-02:00Pequenas fábulas urbanas #5 – Brincando de Boneca<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhcPpzgQPvgfV7mHp9YYfzq1qpf7Eh8RbR8L4J2MxWRA7q5BatR5KXZPF28IS2a1QEwCgSWqa0-3ZrjRvtinAw1oc35Q45VL_eSh9S9dtibnFe6ts0chJoLNUAy6HCTK2NJJ6DxDjP7Ctoi/s1600-h/alfabetogotico_z.gif" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhcPpzgQPvgfV7mHp9YYfzq1qpf7Eh8RbR8L4J2MxWRA7q5BatR5KXZPF28IS2a1QEwCgSWqa0-3ZrjRvtinAw1oc35Q45VL_eSh9S9dtibnFe6ts0chJoLNUAy6HCTK2NJJ6DxDjP7Ctoi/s320/alfabetogotico_z.gif" /></a></div>Zapeando pelos canais da TV à cabo em uma noite de sexta-feira, a mulher se sentia absurdamente entediada. Foi então que se virou para o marido, deitado ao seu lado na cama, e disse: ai, Carlos, me deu agora uma vontade de dar a bunda! Positivamente surpreso, ele olhou para a esposa e falou: Mariana, como você pôde adivinhar? Era exatamente disso que eu estava precisando. Então os dois se arrumaram e saíram de casa. Rodaram com o carro e escolheram uma travesti ajeitadíssima, nas proximidades do Parque Trianon. Passaram a noite com ela, que comeu a bunda dos dois exatamente como queriam. No dia seguinte foram os três para o sítio do casal, e durante o final de semana descobriram que nunca é tarde para brincar de bonecas.<div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-11516029611732783962009-12-05T00:00:00.008-02:002009-12-05T01:01:23.682-02:00Richardson<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfHVFDzX_pFBagfskq5dHQHcAwnZFPF2-PE6oqGU1J2eoCUXGGU5Uo3QfObJ8_q-fRsFxSmQuhvOsHWsKJPlP0UQhAy7q46R4NkDArcdzvwgfPPQ-iEcqoJpcG6FCG5El-AVpEM0yNW4de/s1600-h/terryworld.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfHVFDzX_pFBagfskq5dHQHcAwnZFPF2-PE6oqGU1J2eoCUXGGU5Uo3QfObJ8_q-fRsFxSmQuhvOsHWsKJPlP0UQhAy7q46R4NkDArcdzvwgfPPQ-iEcqoJpcG6FCG5El-AVpEM0yNW4de/s200/terryworld.jpg" /></a></div>Inspiração total para pessoas libertinas como eu, tanto como fotógrafo quanto como personalidade, Terry Richardson vive plenamente sua arte e sua sexualidade, abalando todas as estruturas. Isso aparece em cada ideia, clique, desenho e projeto do artista. <br />
<a name='more'></a><br />
<br />
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgLD2e5kQVEC8q-rHDGh499F1e7Kvc-RauG6UN6LFwziEEj6DShyphenhyphen_VkzKhZMKFoCIpBCyJsvXHVyDf_TdOsOe9cQZu9nkRr8Krs6ueSMgz5NuWA5k0eXkxDPo1Cn0m10ai3Oj12fyxU71vY/s1600-h/terry-richardson-01.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><br />
<img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgLD2e5kQVEC8q-rHDGh499F1e7Kvc-RauG6UN6LFwziEEj6DShyphenhyphen_VkzKhZMKFoCIpBCyJsvXHVyDf_TdOsOe9cQZu9nkRr8Krs6ueSMgz5NuWA5k0eXkxDPo1Cn0m10ai3Oj12fyxU71vY/s200/terry-richardson-01.jpg" /></a><br />
Seus trabalhos são muito surpreendentes, e seus fotografados vão desde o presidente Obama até o travesti da esquina. Praticamente qualquer um desses fotografados pode estar sem roupa, fazendo sexo explícito. Nem todos são pessoas bonitas. Algumas fotos são mesmo repugnantes, mas até mesmo estas têm algo de genial. Um momento exato, uma situação, um estado de espírito eternizado pela lente. Todas as fotos mostram modelos à vontade e felizes consigo próprios.<br />
<br />
Em 2007, no Rio de Janeiro, ele fez um livro que reuniu personalidades do meio artístico, as mais díspares possíveis (de Dercy Gonçalves a Cauã Reymond, passando por Alexandre Frota) em fotografias para lá de ousadas.<br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhLgkgAP0qHNB-gdpkuXek2j5VukJX7EUlLLNtETJ_L9mCdovXsOLAwLT0smHE2ZpuyDd-Cv21ZSh_ylb9MniaUZoE3o9pplB90Mw5g4D0McXFE0ot_tN6lG92TAxRml68-Q6gH7BJDVoI-/s1600-h/terryrio.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhLgkgAP0qHNB-gdpkuXek2j5VukJX7EUlLLNtETJ_L9mCdovXsOLAwLT0smHE2ZpuyDd-Cv21ZSh_ylb9MniaUZoE3o9pplB90Mw5g4D0McXFE0ot_tN6lG92TAxRml68-Q6gH7BJDVoI-/s200/terryrio.jpg" /></a></div>Sexo puro e sem pudores, escatologia, iconoclastia, surpresa. Se é algo assim que você procura, pode entrar no blog dele, em seu website ou comprar o livro editado pela Taschen Books. Se não está procurando isso, considere conhecer um pouco de seu trabalho mesmo assim. Mesmo sem estar procurando conscientemente, pode ser exatamente disso que você precisa para ampliar ainda mais os seus horizontes. Os mais animados com a ideia podem até mesmo se candidatar para serem modelos do artista, se estiverem dispostos a tudo. Eu mesmo ficaria muito tentado com a possibilidade.<br />
<br />
<br />
Blog: <a href="http://terryrichardsonworld.blogspot.com/" target="blank">http://terryrichardsonworld.blogspot.com</a><br />
Website: <a href="http://www.terryrichardson.com/" target="blank">http://www.terryrichardson.com</a><div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-50139290128443778152009-12-04T23:07:00.000-02:002009-12-04T23:07:48.721-02:00Morbidez [miniconto]De mãos dadas, ao redor de sua cama, todos nós rezamos para que nossa amiga <i>morresse.</i><div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-32697550899403221222009-12-02T10:39:00.004-02:002009-12-02T10:45:24.208-02:00Feliz aniversário, Sibila [conto]<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj83WZWger5ILxDsYY_2TKh_C3O8sF9t9PLp6HPsY2Yy2g9FICTeYmPiFEOD_vV_WaMuP66c9MHe1CXaXg4ChOY4NbfUz60VYQB35xdW0y-D_6YbITid_ffN_l8x8pOOoUwDEDcHsVtm6Py/s1600/sibilascrap.png" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj83WZWger5ILxDsYY_2TKh_C3O8sF9t9PLp6HPsY2Yy2g9FICTeYmPiFEOD_vV_WaMuP66c9MHe1CXaXg4ChOY4NbfUz60VYQB35xdW0y-D_6YbITid_ffN_l8x8pOOoUwDEDcHsVtm6Py/s200/sibilascrap.png" /></a></div>Hoje Sibila faria 33 anos, e não lembrei da data para ninguém. Nem para o meu marido, que tinha tanta pena dela. O João Carlos sempre foi tão compreensivo, pedindo que eu tivesse mais paciência. Afinal, ela era minha irmã. Também não fui ao cemitério. O dia não é para ser motivo de comemoração e muito menos de tristeza. Não me envergonho de admitir que sua morte foi um verdadeiro alívio para todos nós. Mesmo morta, às vezes ainda sinto sua presença, e é como se ela estivesse prestes a se materializar a qualquer momento, junto à cama de nosso filho, neste quarto que um dia foi dela.<br />
<a name='more'></a><br />
Coincidência ou não, hoje Carlinhos teve um ataque de fúria e revolta. Gritou e mordeu os lábios até que saísse sangue. Agora dorme por causa dos calmantes que diluí no achocolatado de seu lanche da tarde. O enfermeiro já deu o seu banho diário e trocou suas fraldas antes de ir embora. Na máquina, os sinais vitais parecem estáveis. Sua expressão é tranqüila, mas não sei por onde andam seus sonhos. Antes do acidente de carro, ele era um menino com toda a vida diante de si e agora tudo o que podemos lhe oferecer são os canais da televisão a cabo, o aparelho de 42 polegadas sempre ligado diante da cama.<br />
<br />
Talvez eu esteja vivendo o futuro maldito que se refletia para mim nos olhos ameaçadores de minha irmã. Se ela estivesse entre nós, talvez se sentisse satisfeita de nos ver assim. Afinal, desde que éramos pequenas eu sempre fui a única pessoa na casa de quem ela demonstrava não gostar. Porque enquanto todos os outros viam nela uma pobre vítima, eu era a única a saber que Sibila era apenas um monstro de ego com síndrome de down, deitada em uma cama hospitalar aos cuidados constantes de nossa mãe, a quem ela consumiu até a morte.<br />
<br />
Mamãe morreu sentada ao lado de Sibila, que nem se dera conta do ocorrido e ainda se babava, olhando para o teto, quando cheguei lá para levar mantimentos e ver se elas estavam bem. Foi então que precisei trazê-la para cá e deixá-la neste mesmo quarto. Cuidada pelos enfermeiros, ela viveu aqui por mais dois anos, antes de morrer em decorrência de complicações cardíacas. Eu ainda estava grávida de Carlinhos e lembro como ela me olhava de sua cama, com uns olhos que pareciam me culpar por eu ter nascido normal, por eu ter casado e estar formando minha família. Me pergunto se alguma vez ela teve consciência de que eu estava grávida, e o que ela desejaria para meu filho se tivesse colocado os olhos sobre ele.<br />
<br />
Hoje trabalhei o dia inteiro na casa, tentando varrer sua presença de cada canto, tentando tirá-la de minha memória. Rezando para esquecê-la, para que ela fosse para a luz e nos deixasse em paz. Deixei tudo em ordem: a mesa posta, a comida no forno. Liguei para o João Carlos e perguntei se ele iria demorar para chegar em casa. Então sentei nessa poltrona e fiquei olhando para o meu filho em cima da cama. Olhei para ele e percebi o quanto estava cansada. Tive uma vontade de dormir para sempre, de deitar no seu lugar e não fazer mais nada. Então senti meu corpo imóvel, como se eu não fosse mais poder levantar dessa poltrona e me deixei tomar por essa sensação relaxante. Me dei conta de que havíamos ficado tetraplégicos junto com Carlinhos, com braços e pernas imóveis, a epiderme insensível. Só cabeça pensante e corpo imóvel – os sonhos largados de lado.<br />
<br />
Nossa vida tinha se transformado na vida de Sibila. Era como se fosse ela, ali, naquela cama. No lugar de nosso filho, olhando para mim como se eu tivesse sido a culpada pelo acidente. Eu vi o seu olhar acusador nos olhos de Carlinhos durante o ataque que ele teve pela manhã. Quando enfim se acalmou, meu filho ficou olhando para o teto, babando, com a boca aberta como a de Sibila. Agora ele está tranqüilo, e eu estou aqui para guardar o seu sono, esperando que João Carlos para o jantar. Mas o tempo passa e meu marido parece que não chega nunca. Estou aqui nessa poltrona, cansada, o sono começando a pesar, quase incontrolável.<br />
<br />
Minhas pálpebras cerram mas torno a abri-las, lutando para permanecer desperta. A comida ainda está no forno. Ouço os passos no corredor e, de repente, vejo Sibila entrar no quarto com seus passos claudicantes. Ela caminha com dificuldade, braços e pernas moles. Chega perto da cama de Carlinhos e olha para ele sorrindo. Eu tento gritar, mas de minha garganta sai apenas um assobio fino, quase inaudível. Ela sacode o corpo de Carlinhos tentando acordá-lo. Vejo os olhos de meu filho se abrindo, o medo. Tento me levantar para impedir que ela lhe faça mal, mas meu corpo não responde.<br />
<br />
De pé, ao lado da cama, ela olha para mim e ri. Está com sua roupa de festa, chapéuzinho de papelão, bate palminha com as mãos descordenadas. Depois olha para ele e beija-o no rosto. Puxa-o pelo braço com sua força descomunal, como se ele fosse um boneco de pano. Diz para ele com sua voz fanha: "vem com a tia" e o carrega junto consigo em direção à janela. Escuto o apito de emergência dos aparelhos que mantêm a respiração de Carlinhos. O corpo de meu filhinho está sendo arrastado pelo chão. Junto todas as minhas forças para segui-los e chego a me arrastar também, mas ainda estou longe. Escuto o barulho da chave virando na fechadura. João Carlos está chegando, mas não sei se vai dar tempo. Ela já está dependurada no parapeito com meu filho e parece prestes a saltar em direção à luz.<br />
<div><br />
</div><div><br />
</div><div><span style="font-size: x-small;"><< VERSÃO 1 >></span><br />
</div><div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-71845630167306504672009-11-24T11:02:00.001-02:002009-11-24T11:03:10.087-02:00Raiva nos raios de sol<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi6NJvrQ5uRf3JVOUv2dEv4A0XEPK-54ODGWzi3OU4u0gQP6NieFujYaAY5a-wPRDKyHF1rA0kPHdGJ1bCartpchXRr8wn2kT58-AJ4Fq3QkfouGlCbeS7YFt2Wypd_Kil_xSnFB5KubaYi/s1600/raiva-350.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi6NJvrQ5uRf3JVOUv2dEv4A0XEPK-54ODGWzi3OU4u0gQP6NieFujYaAY5a-wPRDKyHF1rA0kPHdGJ1bCartpchXRr8wn2kT58-AJ4Fq3QkfouGlCbeS7YFt2Wypd_Kil_xSnFB5KubaYi/s200/raiva-350.jpg" width="135" /></a></div>Tendo a violência como nota predominante e com alguns toques de escatologia, Fernando Mantelli fez deste um grande livro de contos. A linguagem é muito moderna e direta, e as histórias são memoráveis, com temas atuais e pertinentes.<br />
<a name='more'></a><div><br />
</div><div>Fernando Mantelli tem um vocabulário próprio, não só de palavras, mas de elementos narrativos, que unem todo o livro. Não digo que seja uma leitura das mais prazerosas: para ler precisa-se de estômago. Mas quem disse que a literatura está aí só para dar esse leve tipo de prazer que as pessoas esperam? Quem inventou isso de a arte ser apenas entretenimento? <b><i>Raiva nos raios de sol</i></b> me proporcionou não apenas entretenimento, mas reflexão e fruição estética e lingüística.<br />
</div><div><br />
</div><div>Ouvi comparações com Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, mas sou grande apreciador/conhecedor desses dois escritores e este paralelo me pareceu um pouco simplista demais. É como dizer que qualquer história de vampiro com putaria escrita em linguagem moderna seja imitação de Dalton e que qualquer história de violência escrita com bom ritmo seja mimetização de Fonseca. Não, né?<br />
</div><div><br />
</div><div>Além do livro ser ótimo, tem uma capa fantástica e um projeto gráfico muito interessante, trabalhos de Samir Machado de Machado e Guilherme Smee.<br />
</div><div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-35887259029803031872009-11-19T19:15:00.000-02:002009-11-19T19:15:07.967-02:00Contos de Belkin - Алекса́ндр Пу́шкин<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhAZLp5KK3eeUpeCzxbnYnCXUXWo1MjhKrBq29IG6JT-dZ9YwaOBJN7CgrDD5ORoAc3acxuEJwBQwmqbpxqfdf2ewL-hwsPz5HMqOad4xrnpLT7iTVnH4IRQCwEkmajzdsIh5AvPOXlUJa-/s1600/contosdebelkin.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhAZLp5KK3eeUpeCzxbnYnCXUXWo1MjhKrBq29IG6JT-dZ9YwaOBJN7CgrDD5ORoAc3acxuEJwBQwmqbpxqfdf2ewL-hwsPz5HMqOad4xrnpLT7iTVnH4IRQCwEkmajzdsIh5AvPOXlUJa-/s200/contosdebelkin.jpg" /></a></div>Os russos. Ah, os russos e seus contos de efeito. Temos neste pequenino volume de Alexander Pushkin (Алекса́ндр Пу́шкин, para os mais íntimos com a língua russa) uma verdadeira jóia exemplar. Tive o prazer de ler essa coleção de cinco contos em novembro de 2003 e reli agora, em novembro de 2009. Escritas no século XIX por um autor em quarentena devido a uma epidemia de cólera, as narrativas têm enredos trágicos mas são escritas em tom irônico – algumas com um delicioso toque farsesco.<a name='more'></a><i><div><br />
</div>O tiro</i> conta a história de um exímio atirador, que prefere, por requintes de crueldade, deixar de matar seu rival em um duelo, deixando-o com uma mácula em seu histórico e em seu caráter mas guardando o crédito de ter sido superior. Em <i>A nevasca</i> dois jovens combinam de se casar às escondidas mas não levam em conta as condições climáticas possivelmente adversas que podem incidir. Em <i>O agente funerário</i>, o personagem principal toma uma bebedeira e se vê recebendo seus clientes para um inusitada recepção em seu novo endereço comercial. <i>O chefe da posta </i>é uma excelente narrativa de encaixe que conta a história de uma menina que ajudava o pai no serviço postal. O livro fecha com <i>A sinhazinha camponesa</i>, uma história com pinceladas góticas sobre duas famílias rivais ligadas por uma paixão entre seus jovens integrantes.<div><br />
</div><div>Os enredos parecem óbvios contados assim, superficialmente. Mas narrados pro Pushkin ganham muitas cores e se tornam novos e imprevisíveis. A estrutura do livro em si é o que mais contribui para seu valor literário e estético. O volume é construído como uma pequena boneca russa, uma <i>matrioshka</i>, onde as histórias se encaixam dentro de uma estrutura maior. As narrativas teriam sido escritas por Pushkin sob uma espécie de heterônimo (Belkin) e publicadas primeiramente por um editor fictício, cujo prefácio remete à carta de uma pessoa que conheceu Belkin pessoalmente. Em <i>O chefe da posta</i> este recurso chega a um requinte de profundidade onde Belkin narra uma história dentro da qual o paradeiro da personagem principal é contado pelo pai da menina. O próprio conto é uma pequena boneca russa dentro da estrutura maior do livro. </div><div><br />
</div><div>Para integrar a biblioteca básica de qualquer contista.</div><div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-81084653774474893432009-11-18T17:44:00.002-02:002009-11-18T18:09:13.343-02:00Pequenas fábulas urbanas #4 – O principezinho tirana<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh_t99NXQDqcgeR11nfZ_NfRz3OkdHzNmbpfMkEbjnWBo9n_ZNST1-hm8rCHfqN8Pm_Z50iI28OEiFflNUJdeECUk0I2qYK7ft5MFWFuPPqQM5pO5cOkeaezpekuNztQHynLLAHoqge30Zc/s1600/alfabetogotico_e.gif" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh_t99NXQDqcgeR11nfZ_NfRz3OkdHzNmbpfMkEbjnWBo9n_ZNST1-hm8rCHfqN8Pm_Z50iI28OEiFflNUJdeECUk0I2qYK7ft5MFWFuPPqQM5pO5cOkeaezpekuNztQHynLLAHoqge30Zc/s1600/alfabetogotico_e.gif" /></a></div>m uma ilha do oceano atlântico, onde resiste um dos últimos reinados deste nosso mundo prá lá de globalizado – no qual a Coca-cola já chegou à China, e a coca e a cola já chegaram a praticamente todos os lugares –, nesta ilha vivia um principezinho que era uma verdadeira tinhosa. Isso quem dizia eram os seus companheiros de escola e de noitada, toda vez que eles saíam juntos para barbarizar. E eles saíam freqüentemente, tipo todo o final de semana. Uma verdadeira loucurinha nos bares e boates <i>gays</i>. Mas eram sempre escoltados por seguranças paisanos da guarda imperial, que fechavam as casas noturnas e intimidavam ou compravam eventuais curiosos, para que o principezinho surubasse em paz e com relativa privacidade. Até que um dia ocorreu o inevitável: um <i>paparazzo</i> conseguiu clicar o principezinho em diversas poses para lá de provocantes. A fotos incluiam arretos com direito a chupão no peito e passada de mão pelos países baixos dos amigos de noitada, que há muito tempo já haviam virado democracias populares. Aquilo foi impresso em edição extra nos jornais da imprensa marrom no dia seguinte e atiçou o movimento GLBT. A história acabou com o principezinho virando não só de bruços, mas virando o rei daquele país. Melhor dizendo, não apenas rei daquele país, como também o rei do mundo homossexual unido. Leia-se: imperador de no mínimo três quartos do mundo sexualmente assumido e sadio. A rainha, que no princípio havia posado de chocada, desempenhando protocolarmente o seu papel, acabou se declarando muito orgulhosa de seu filho, que sabia como ninguém acompanhar os tempos modernos, garantindo assim que a monarquia encontrasse seu território no mundo globalizado. Pagou para ele uma sessão de fotos com Terry Richardson que virou <i>best seller</i> e aqui acaba nossa história. Procure no Google e você encontrará as fotos das quais estou falando. Quando ao príncipe, ele continua reinando e fervendo mais do que nunca, enquanto balança suas tranças livremente no submundo. Uma verdadeira rainha do sexo.<div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-60368931895993659242009-11-18T17:10:00.005-02:002009-11-19T19:37:23.180-02:00A casa dos budas ditosos<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjS1Xc5ExZwQbEmzd3HDfR1rLHpksgw7Kzh3Lj9LTWSVzacLKsiVAY1dS_B-7ULAbFgoYwiRS4oye9UW_ZPpG2EjmFhhoakKGcN6qCnOXQFf7LJmaMlR7cpMh1s58cEdwNd_DPJ7EPd8qN2/s1600/budasditososcapa.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjS1Xc5ExZwQbEmzd3HDfR1rLHpksgw7Kzh3Lj9LTWSVzacLKsiVAY1dS_B-7ULAbFgoYwiRS4oye9UW_ZPpG2EjmFhhoakKGcN6qCnOXQFf7LJmaMlR7cpMh1s58cEdwNd_DPJ7EPd8qN2/s200/budasditososcapa.jpg" width="131" /></a></div>Se alguém me perguntasse como eu demorei tanto para ler este livro de João Ubaldo Ribeiro, lançado em 1999, eu não saberia responder ao certo. Talvez seja porque o livro fez tanto sucesso na época, integrando a série <b><i>Plenos Pecados</i></b><span class="Apple-style-span" style="font-weight: normal;">. Na época, li</span><i><b> Xadrez, truco e outras guerras</b></i><span class="Apple-style-span" style="font-weight: normal;">, <span class="Apple-style-span" style="font-style: normal;">de José Roberto Torero, e não achei o bixo. Também tinha uma peça de Fernanda Torres, que infelizmente perdi. Creio que ela vá retomar futuramente, pois o texto é impagável.</span></span><br />
<a name='more'></a>Trata-se de uma obra de genialidade. Uma ode à extinção de qualquer caretice. Um tratado de literatura e sexo da mais altíssima qualidade. A narradora é a coisa mais primorosa, repleta de referências do erudito ao abertamente pornográfico.<br />
<br />
Gostaria de saber como foi que João Ubaldo Ribeiro escreveu este livro, e sou capaz de apostar que quando o escreveu ele estava com a menor das pretensões. Me despertou a vontade de ler outras coisas dele. Livros como esse são extremamente necessários em uma sociedade ainda tão atrasada como a nossa, que consome sexo como se fosse água potável e depois posa de cu apertadinho.<br />
<br />
Viva João Ubaldo, viva a <b><i>Casa dos budas ditosos </i></b><span class="Apple-style-span" style="font-weight: normal;">e viva toda essa putaria e verdade escrita com tamanha classe. Esta narrativa é a prova de que o sexo ainda é um dos melhores substratos para a boa literatura, senão o melhor de todos. Indico o livro para todos os adolescentes do ensino médio e fundamental, e também para os demais leitores que se sabem atrasados em questão de bom sexo e de boa literatura.</span><div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-12146363757190919732009-11-17T20:28:00.001-02:002009-11-17T20:29:53.491-02:00Katharina & Sebastião [conto]<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhJ15uojHDRKdsCcymaznEnESs3bO3XgcIwhEYpNVzKZUBkpDVBXlUsiHblqSuy3b0LQdOZ_uKjrBrsOvUk9_Wdb4jCto905EHHnvaQQ59VljjN2OzCcLxUgfDpOfDPQSYwIJw2Er-HDl0v/s1600/scrapkatharina.gif" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhJ15uojHDRKdsCcymaznEnESs3bO3XgcIwhEYpNVzKZUBkpDVBXlUsiHblqSuy3b0LQdOZ_uKjrBrsOvUk9_Wdb4jCto905EHHnvaQQ59VljjN2OzCcLxUgfDpOfDPQSYwIJw2Er-HDl0v/s200/scrapkatharina.gif" width="196" /></a></div>“Triste é partir sem data para regressar.<br />
<br />
Ainda mais triste é o regresso, quando não há ninguém à espera.<br />
<br />
E acontece que a vida é uma grande viagem, para a qual não se tem data marcada, na qual a esperança de que alguém fique à espera acaba sendo uma esperança só. Ou a desesperança de quem não pôde esperar mais.”<br />
<br />
Bonito, isso.<br />
<a name='more'></a><br />
Às vezes vêm umas frases <i>show</i> nesta revista. Na página de citações. Nas outras páginas vêm só os carão. Modelo, ator, atriz, esse pessoal todo das novelas. Aí é bom de ver, né? Pra encher os olhos. Pra saber qual é a moda, o que está <i>in</i>, o que está <i>out</i>. Qual é a cor da estação. Quais são os acessórios. Quem está namorando quem. Quem separou. Mas bom mesmo é a página das citações. Faz a gente pensar. Porque pode ser coisa que alguém disse nesta semana ou pode ser coisa que disseram, assim, tipo, uns cem anos atrás. Essa frase, mesmo: “Triste é partir sem data para regressar.” Quem escreveu foi Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego. Tá escrito aqui. E é tão lindo, porque além do mais foi o Fernando Pessoa quem escreveu. E porque as frases aparecem sempre quando a gente mais precisa delas. Pode ser num livro, num jornal, numa revista. Num papelzinho escondido dentro do biscoito chinês. Numa folha rasgada de um caderno pautado. Ou num guardanapo trazido pelo vento. Quando não vem assim, por acaso, acaba vindo como pensamento, na cabeça da gente. Como se fosse uma lembrança. Quando eu estava na oitava série, lá no Alegrete, o professor de literatura nos fez decorar uns versos que diziam assim: “O poeta é um fingidor / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente.” Também foi o Pessoa quem escreveu e eu gostei. Me lembrei dos versos quando o Tonhão me comia atrás do trailer. Era a minha primeira vez. Ele me arrombando e eu de quatro, agüentando no osso e pensando: “O poeta é um fingidor / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente.” Era madrugada de quarta-feira de cinzas. A cidade meio vazia. O seu Valdo já tinha me dito para não dar conversa pro Tonhão, que ele tinha fama de ser perigoso. Diziam que ele tinha morte nas costas. Mas o seu Valdo era apenas meu chefe. Não era meu dono. Ele tinha ido se divertir em Porto Alegre e me deixado lá trabalhando em pleno carnaval. Ai, por favor! Me poupe! Eu, heim!? Naquele tédio de vidinha, e ainda por cima trabalhando como chapista. Agora, me diz, quem na cidade vai passar o carnaval comendo xis num trailer? Ah, mas no Alegrete, e naquela época, as pessoas iam para lá comer xis em pleno carnaval. E tomar cerveja e quebrar garrafas. E eu ali no meio daquele povo todo, fritando ovo, carne, coração, bacon. Depois socando tudo no pão e prensando. E naquele dia ainda tive que ficar servindo, cobrando, dando troco. Nos dias normais o seu Valdo era quem fazia isso. Mas no carnaval daquele ano eu tive que fazer o meu trabalho e o dele. E ele ainda queria que eu não desse papo pro Tonhão. O Tonhão gostoso, lindo, loiro, com uma cicatriz bem no meio da cara. Me dava um tesão olhar para ele, que eu mal podia parar de olhar. E ao mesmo tempo tinha medo. Acontece que ele soube chegar, foi chegando, e naquele dia eu não dei só papo pra ele. Eu dei foi tudo: dei papo, dei xis e dei até o ó, depois que todo mundo já tinha ido embora. Ele ainda gozou na minha cara e depois me bateu. Me deixou com um olho roxo. Pegou todo o dinheiro que tinha no caixa e me deu a metade, dizendo que era melhor eu sair da cidade por uns tempos até ele esquecer que eu existia, prometendo me caçar se eu dissesse o que ele tinha feito. Disse que acabava comigo e também matava toda a minha família. Eu fico impressionada com a falta de ser-humanismo das pessoas. Depois que ele foi embora eu me olhei em um espelho pequeno, desses com borda de plástico laranja, que o seu Valdo tinha pregado em uma parede mais escondida do trailer. E me deu um desespero, uma vontade de sair, mesmo, dali. Porque eu não tinha como explicar o olho inchado, o sangue escorrendo pelo rosto. Não tinha como explicar o dinheiro que faltava no caixa. E se eu explicasse o Tonhão voltava pra me matar. Foi assim que eu caminhei até a rodoviária e usei uma parte do dinheiro pra comprar uma passagem e fugir pra Porto Alegre. Chegando lá, já de cabeça feita, tive que ir à luta, fazer a vida.<br />
<br />
“Triste é partir sem data para regressar.” Preciso decorar estas frases da citação pra dizer depois pras mana da Getúlio com a Barbedo, quando elas me perguntarem como foi a viagem. Eu digo essas coisas e elas ficam rindo, que só falta rolar no chão. Elas dizem: olha, Katha, me diz da onde é que tu tira essas loucurinha, heim? Aí eu vou olhar e vou dizer: Fernando Pessoa. Pode ter certeza que elas vão querer saber quem é o bofe, que carro ele tem, qual é a placa, o que ele pede para fazer, se tem acué. E eu vou responder o quê? Chamar de burra? De ignorante? Depois uma fica com raiva e vem me dar uma navalhada na cara. Melhor dizer que não, que é um poeta português. Aí elas vão ficar passadas comigo. Vão ficar dizendo que eu sou exótica, viajada. Por isso que as mana me chamam de professora. Porque eu nasci pra brilhar, viu, meu bem? Não pra morrer dentro de um trailer no Alegrete.<br />
<br />
Por isso, foi bom eu ter ido embora. Foi bom sim eu ter partido em um ônibus igual a esse. Apesar de ter sido triste, como agora. Todos dentro do ônibus parecem tristes e nem sei se é por chegar ou por partir. Ou se estão só cansados da viagem. Mas dá quase no mesmo. Não interessa. Eu também estou cansada de tudo. Eu, que estou voltando mas também estou partindo, de uma forma ou de outra. O que importa é que eu estou aqui no ônibus, sentada e lendo essa revista na página das citações, porque o resto eu já li tudo. Eu parei nessa frase que leio e releio toda hora. “Ainda mais triste é o regresso, quando não há ninguém à espera.” É uma frase bonita e triste. Ainda mais pra mim. Ainda mais agora, que estou voltando pro Alegrete e não sei se ainda posso encontrar alguém me esperando.<br />
<br />
Talvez eles ainda esperem por Sebastião. Mas ele não vem mais. Agora há pouco o ônibus parou em uma lanchonete na beira da estrada. Eu desci, usei o banheiro e pedi um pastel de queijo. Sentada ali, perto da janela, sozinha, eu olhava os carros passando e levantando o pó no asfalto. Dei uma mordida no pastel e senti o gosto da gordura. Um pastel quase vazio por dentro. E me veio uma tristeza muito grande, porque eu pensava nessa citação, nessa última parte que diz assim: “E acontece que a vida é uma grande viagem, para a qual não se tem data marcada, na qual a esperança de que alguém fique à espera acaba sendo uma esperança só. Ou a desesperança de quem não pôde esperar mais.” Eu pensava na frase e lembrava da minha mãe, do meu pai, dos meus irmãos. Se fosse nos velhos tempos a esta hora eles deviam estar na missa. Mas será que ainda rezavam por mim, que ainda sentiam a minha falta?<br />
<br />
Não, acho que não. Porque, se fosse assim, onde estariam as rezas, então? Onde estava Deus que não fazia nada enquanto eu era atacada na noite? Enquanto os meninos da vizinhança esvaziavam o extintor de incêndio dos carros em mim e depois me batiam nos seios, no rosto? Enquanto me chutavam a cara e me arrebentavam toda? Onde é que está Deus nas vezes em que a vizinha do ponto atira um balde de água gelada em cima de mim no inverno e fica gritando, me ofendendo, espantando a minha freguesia? Quando ela faz isso eu sempre tenho que sair correndo, senão a polícia vem e me dá uma coça. Uma vez eles até me levaram para um descampado e me comeram sem pagar nada. Foi bom, mas trabalho é trabalho, mesmo quando é divertido. E naquele dia eu voltei pra casa sem um tostão. Na cozinha só tinha pipoca, e foi o que eu comi, no dia seguinte. Podia ter feito os três programas daquela noite e aí tinha dado para comprar carne. Eu tinha saído com minha saia mais curta, só no capricho e na produção. E onde estava Deus? No milho da pipoca? Só se for. Pois que se exploda! Onde é que estavam as rezas quando eu andava sozinha pela noite esperando por um programa na Getúlio Vargas, por alguém que não tinha marcado hora ou lugar para me encontrar? Onde estava Deus na semana passada, quando, depois do exame de sangue, eu soube que estava com a maldita, naquela sala do posto de saúde?<br />
<br />
Quem sabe ainda rezam por Sebastião, mas ele não volta mais. Quem sabe até eu mesma quisesse reencontrá-lo, para estar novamente entre os meus, pra me sentir em casa. Depois de tantos anos, depois de tantas mudanças de ponto e de pele. Depois tomar na cara, de cheirar a fumaça dos canos de descarga, de beber o veneno das ruas, injetá-lo na veia: foi isso o que me tornei. Está no meu sangue. Não sei se fui eu mesma que me fiz ou se o mundo me fez assim. É por isso que Sebastião não vem mais. Porque agora sou só eu, aqui, dentro deste corpo. Dentro deste ônibus em um final de tarde. De volta ao Alegrete, ao ponto de partida.<br />
<br />
O sol se põe e não tem mais luz para ler a revista. Arranco a página das citações e guardo na minha bolsa. Fico olhando pela janela e reconhecendo a paisagem, contando as árvores que cresceram, as árvores que cortaram. Contando as batidas do meu coração. Tum-tum, tum-tum. Contando que ainda haja alguém à minha espera. Quantos anos desde que parti sem dar notícias? Sem notícias da mãe, do pai, dos irmãos? Vivendo como uma perdida, na escuridão, escondendo-me pelas sombras da noite. Como alguém que nunca precisasse de colo, sim, embora procurasse apenas por alguém que me amasse, mas era no lugar errado. Alguém que agora se vê diante da realidade e ela é dura demais. Ela é mais dura do que a dureza das ruas.<br />
<br />
O ônibus estaciona em um dos <i>boxes</i> da rodoviária. Coloco meu casaco, apóio a alça da minha bolsa no ombro esquerdo e vou saindo junto com os demais passageiros. Em cima da porta tem um espelho, onde me olho sem reconhecer ali o menino que partiu. Ando pelas ruas e cruzo com as pessoas da cidade. Reconheço algumas delas, mas elas não me reconhecem. Apenas me olham de cima a baixo. Algumas riem. Esperam eu passar e fazem comentários. Olha o travesti. Que nojo. Que ridículo. Pelo amor de Deus. Eu que peço pelo amor de Deus, mas em silêncio. E continuo andando pelas ruas com o rosto erguido e sem responder para ninguém. A vida me ensinou que cada um paga o preço por ser aquilo que é.<br />
<br />
Atravesso a praça e chego na igreja. A missa está terminando. As pessoas saem. Entre elas está minha mãe, acompanhada pelo meu irmão mais novo. Está velhinha. A vida judiou muito dela. Sinto pena e amor. Sinto as pernas tremendo, os joelhos moles. Sinto vontade de abraçá-los e dizer que estou de volta em casa. Queria perguntar pelo pai e pelos outros lá em casa. Mas eles passam sem levantar o rosto. Não me reconhecem mais. Essas pessoas que eu abandonei por necessidade e por vergonha. Esses que têm nas veias o mesmo sangue que o meu, mas sem o veneno. A mãe interrompe o passo. Parece que vai olhar para trás, como se tivesse esquecido alguma coisa. Depois continua andando. O meu irmão caçula a segura pelo braço oferecendo apoio, como se faz com os velhos. Sigo eles de longe no trajeto para casa. Mas não sei se devo voltar. Alguns caminhos não tem volta. Ou têm? Não sei.<br />
<br />
Vou seguindo eles de longe. Abro a bolsa e pego de novo a página de revista. A página das citações. Leio a frase do Fernando Pessoa e sinto com o coração que ele estava certo.<br />
<br />
A viagem de volta é triste quando não tem ninguém esperando por nós.<div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-36723953186756619002009-11-16T18:08:00.001-02:002009-11-16T22:08:16.746-02:00Billy Budd and Other Stories - Melville<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHJFVNYZubjrnqVCzgEAzDbGZkoTm4VtLC1nXW6WI8-xIAgyT0KDa5Gh6Pv8RnQ_Bq5DbnbFUvT1DRGWaL0g03HOeIKrwlbLkE3xPLspJaIFsjxUlZjVcJZtLr1sMhHBW9fSipjPYrWazr/s1600/billybudmelville.jpeg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHJFVNYZubjrnqVCzgEAzDbGZkoTm4VtLC1nXW6WI8-xIAgyT0KDa5Gh6Pv8RnQ_Bq5DbnbFUvT1DRGWaL0g03HOeIKrwlbLkE3xPLspJaIFsjxUlZjVcJZtLr1sMhHBW9fSipjPYrWazr/s200/billybudmelville.jpeg" /></a></div>Esta edição inclui o excelente conto <i><b>Bartleby, o escriturário</b></i>. O prefácio é muito bem escrito por Frederick Busch, com notas esclarecedoras sobre sua vida e sua relação com Nathaniel Hawthorne. O volume é uma ótima opção para se conhecer o trabalho do mestre Melville, em especial os contos e novelas. Ganhei a edição da Penguin Books para o mercado britânico de meu cunhado Lawrence há anos atrás e estou lendo pela segunda vez. Também existe versão para o Kindle. É um dos grandes livros de contos em língua inglesa.<div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-89747479697009649192009-11-15T18:01:00.000-02:002009-11-18T18:04:26.392-02:0055ª Feira do livro de Porto Alegre - Balanço<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgUtcs9pcLpsTXhl0OKUFe_nIdyXA50JqLOpjXIGs6NItlDJEh2RorH4ps4NB9xQZkKA5xC4C8Yz-7BnbieS9xGqpl712ZiaZK1oYsNvZvHk_rEdx9o6g0EqlcEw5JfK_GIw1_o3C6uViOT/s1600/logo_feira_do_livro_poa.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgUtcs9pcLpsTXhl0OKUFe_nIdyXA50JqLOpjXIGs6NItlDJEh2RorH4ps4NB9xQZkKA5xC4C8Yz-7BnbieS9xGqpl712ZiaZK1oYsNvZvHk_rEdx9o6g0EqlcEw5JfK_GIw1_o3C6uViOT/s200/logo_feira_do_livro_poa.jpg" /></a></div>A Feira do Livro de Porto Alegre encerrou suas atividades em meio a polêmica acerca da diminuição na venda de unidades de livros. Alguns argumentam que, com o advento dos e-readers e da crescente indiferença das novas gerações em relação à literatura tradicional, ela está fadada a acabar em cerca de dez anos. Os números mostrariam isso. Outros afirmam que os livros realmente interessantes não são encontrados nas barracas da feira pelos verdadeiros leitores. Ambos estão certos, de alguma forma. O certo é que a Feira do Livro de Porto Alegre segue sendo um evento muito mais cultural do que de mercado – e isso é fascinante. Está aí o caminho para que ela não acabe jamais.<br />
<a name='more'></a><br />
O mercado editorial está em mutação, isso é indiscutível. Então, que os livreiros e editores acompanhem as mudanças e promovam cada vez mais encontros como os que já promovem todos os anos durante a Feira. Eu vejo no futuro uma Feira do Livro com menos livros em papel e mais eventos, mais encontros, mais multimídia. Durante essa edição pude trocar experiências com diversos escritores, como Marcelino Freire, Gabriela Leite, Altair Martins e outros tantos que são amigos queridos e mais próximos. E aproveitei para adquirir livros excelentes a preços baixíssimos.<div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-56225735076414810202009-11-12T20:38:00.002-02:002009-11-13T01:53:11.078-02:00Pequenas fábulas urbanas #3 – A velhota e o cachorrinho<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgAlmnpG5pbAWbYFzXksWURwtIUXWhiHNiaA5U3xTZ6tB96314SraTeKLVFrnlYx1AGpP-dPbPLHXBGxV68SFA-Jpf0I8Fzur_viF4HEZpy976f9x_6gA8bY2NitXIpenEFpJ7gAqtJWkh7/s1600-h/alfabetogotico_h.gif" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgAlmnpG5pbAWbYFzXksWURwtIUXWhiHNiaA5U3xTZ6tB96314SraTeKLVFrnlYx1AGpP-dPbPLHXBGxV68SFA-Jpf0I8Fzur_viF4HEZpy976f9x_6gA8bY2NitXIpenEFpJ7gAqtJWkh7/s320/alfabetogotico_h.gif" /></a></div>avia uma velhinha que morava logo ali na esquina, e que era tão puta, mas tão puta, que dava o rabo até para os cachorros. E não importava se os cãezinhos eram daqueles de rabo cortado ou não. Todos eles balançavam o rabo ou o cotoco de rabo assim que a viam. Um dia, porém, apareceu em sua porta um dálmata de coleira e tudo. E ela, que dava até para os vira-latas de rua, porque não iria dar também para aquele charmoso canino? Assim o fez e, após alguns minutos de intercurso, ficou com o nó do cachorro entalado. Meu Deus, o que fazer, o que fazer? – dizia ela angustiada e morrendo de tesão. Foi então que sua irmã gêmea chegou em casa e, ao abrir a porta exclamou. Oh, Gertrudes, que bestialidade! Ela disse, oh, minha querida irmã, me acuda. Estava eu encerando o chão quando fui carcada por esse belíssimo cão. A mana riu e tentaram desengatar de tudo quanto foi jeito. Água quente, água gelada, tração. Pensaram até em usar uma faca de churrasco, mas ficaram com pena do bichinho. Dessarte, chamaram o médico da família, que não lhes deu muita esperança. Disse que não tinha remédio a não ser esperar. Aquilo que tinha entrado, cedo ou tarde, por fim sairia. Isso aconteceu – 2 horas depois. No dia seguinte, um homem desesperado batia de porta em porta atrás de seu cão. Bateu na porta de Gertrudes e ela lhe devolveu seu <i>pet. </i>Do dálmata ficou apenas a lembrança e o inchaço. Aconteceu assim. Ela ainda vive ali naquela esquina que tem cheiro de creolina na calçada. Quem passa pela frente da casa pode ouvir os latidos de mais de uma dúzia de cachorros que ela junta na rua e leva para morar com ela e a irmã.<div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-75939916240550013532009-11-09T10:20:00.004-02:002009-11-12T21:06:26.522-02:00Pequenas fábulas urbanas #2 - Puterella<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgMhjyJ4GQ_O-0GeuBsI-syPVEOL88EioeOG67xWxiH-m5KgrUwpRUkhfgZQaprCbZQegdjFilrBFkxbB0FJtp1BvUfO8isUz50ldFj-0FlUOKEzB-c5UT9K9YDPk4ZlVNZXL6GnxKJXE8L/s1600-h/alfabetogotico_a.gif" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgMhjyJ4GQ_O-0GeuBsI-syPVEOL88EioeOG67xWxiH-m5KgrUwpRUkhfgZQaprCbZQegdjFilrBFkxbB0FJtp1BvUfO8isUz50ldFj-0FlUOKEzB-c5UT9K9YDPk4ZlVNZXL6GnxKJXE8L/s320/alfabetogotico_a.gif" /></a></div>conteceu, em uma terra muito distante de ser um lugar livre dos preconceitos – e isso não faz muito tempo, não. Uma menina de classe média-alta, criada dentro da tradição cristã, trabalhava em um consultório médico e estudava na universidade federal. Mas ela não era feliz, tinha uma vida miserável, com a rotina massacrante do trabalho e dos estudos, sem poder fazer nada do que gostava. Então resolveu abandonar a vida madrasta e foi ser puta. Batalhou na zona do baixo meretrício durante anos e era muito feliz. Mas via que o negócio na zona tinha que melhorar muito, ainda. Então resolveu batalhar também pelos seus direitos e pelos direitos de todas as outras prostitutas. Fundou um sindicato, uma ONG para unir todas as suas amigas de profissão e também uma marca de roupas para elas usarem e ficarem mais bonitinhas. Assim aproveitava para levantar um dinheiro pela causa. Deu tudo tão certo que as pessoas da sociedade começaram a olhar para ela com interesse. Um dia apareceu um homem em sua vida. Não era príncipe e não veio montado no cavalo. Mas ele a amava de verdade e até largou seu trabalho para ajudá-la em seus projetos. Assim, eles foram felizes para sempre, freqüentavam os bailes e todos os salões da alta sociedade, ambos com o passo firme e a cabeça ereta. Tanto que ela nunca perdeu o sapato e jamais houve essa bobagem de abandonar a festa à meia noite para não virar abóbora. Histórias como essa existem muitas e são cada vez mais notórias.<div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-27245331952659412102009-11-09T09:44:00.003-02:002009-11-09T09:46:38.565-02:00Contos negreiros<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjniHM-LDv7dQowiXCdYa1D50dRPMCWxGeRoNxXq_GBopHO0xA3yLvsA4JiaD6Nlq9K-R2eNwc50ZflAiyz3SxU0ClCAP6gdmN48X0NERwJYm9PpW2hdD0apEE1G5zrSzPDdg25SyFwNIA-/s1600-h/contosnegreiros.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjniHM-LDv7dQowiXCdYa1D50dRPMCWxGeRoNxXq_GBopHO0xA3yLvsA4JiaD6Nlq9K-R2eNwc50ZflAiyz3SxU0ClCAP6gdmN48X0NERwJYm9PpW2hdD0apEE1G5zrSzPDdg25SyFwNIA-/s200/contosnegreiros.jpg" /></a></div><b><i>Contos Negreiros</i></b>, de Marcelino Freire, é uma pequena jóia literária que foi merecedora do prêmio Jabuti em 2006. São 16 textos que trazem o eco dos cordéis do Recife, com temas atuais e uma narrativa moderna, solta e rápida. Como diz o próprio autor, ele começa seus contos já querendo terminar. Tem um estilo inconfundível. Entre os assuntos, estão o tráfico de órgãos, a homossexualidade, o turismo sexual, a prostituição infantil, todos amarrados pelo tema da escravidão e da negritude. Eu comprei esse livro e também o seu mais novo, <i><b>Rasif</b></i>, na última feira do livro. Também tive a oportunidade de conhecer e conversar um pouco com o Marcelino, que é um cara muito bacana, relax, bom papo. Indico o livro para quem quiser sacar o que é fazer literatura hoje para as pessoas de hoje.<br />
<br />
E também indico o blog do autor: <a href="http://www.eraodito.blogspot.com/">http://www.eraodito.blogspot.com/</a><div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-16923571115250932232009-11-05T19:00:00.000-02:002009-11-05T19:00:14.204-02:00O visitante noturno<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhDqMRNbAuJod3o5VdOGpAZJbRAj2IgKa-sXKlo7pKRL-6MOGFaP1HFdf1VAgb08iBfIJudF31eGeXwxteILEJpw04BUbFe3OO0fHuE2lzI0F3ZcqH6Bs9qFf_8Jh1Sislot8uatBbeONZp/s1600-h/btravenvisitantenoturno.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhDqMRNbAuJod3o5VdOGpAZJbRAj2IgKa-sXKlo7pKRL-6MOGFaP1HFdf1VAgb08iBfIJudF31eGeXwxteILEJpw04BUbFe3OO0fHuE2lzI0F3ZcqH6Bs9qFf_8Jh1Sislot8uatBbeONZp/s200/btravenvisitantenoturno.jpg" /></a></div>Este volume reúne duas novelas de B. Traven, um dos mais obscuros escritores do século XX, cuja real identidade ainda permanece um enigma. <br />
<div>A primeira delas é a que dá nome ao livro. <i><b>O visitante noturno</b></i> conta a história de um aventureiro que abandona a civilização e vai viver nos confins da selva. Lá, acaba tomando conta da casa de um vizinho enquanto esse viaja. Durante sua ausência, aproveita para explorar a biblioteca do vizinho, mas é atropelado por experiências aterradoras. <a name='more'></a></div><div><br />
</div><div>A segunda, <i><b>Macário</b></i>, é a incrível história de um homem que tem o sonho de comer um peru sozinho. Essas duas novelas estão entre as mais conhecidas do escritor misterioso, que já foi incluído por Borges em sua "Antología de la Literatura Fantástica" (1940). </div><div><br />
</div><div>O livro ainda conta com prefácio que fala sobre o que se sabe e o que não se sabe sobre B. Traven, incluindo sua possível aparição no set de filmagens do filme "O Tesouro de Sierra Madre" (1927), baseado em texto seu. Também tem histórias de pessoas bem conhecidas que já se precisaram negar publicamente que eram o verdadeiro escritor por trás do pseudônimo.</div><div><br />
</div><div>Incrível como duas novelinhas podem ser tão curtas e interessantes. Me lembrou a série "Para gostar de ler". <i> Fun and spooky!</i></div><div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-13087921859504267852009-11-05T11:21:00.000-02:002009-11-05T11:21:34.901-02:00Uns trocados [conto]<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhOuYTJ3Q61SubNHxm4uUS1iECkhzntikkeoNxNVu5H4EjBg6Q0In5d97GTMP1U9Miq02GTng6-3j4FFuzLQV6L0fzbsEWyYa5wGI0tP3a9cWC1Pa0oJDZk1GjVJxKLmFYcLewclCUrRm9z/s1600-h/scrapdestaqueconto5.gif" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhOuYTJ3Q61SubNHxm4uUS1iECkhzntikkeoNxNVu5H4EjBg6Q0In5d97GTMP1U9Miq02GTng6-3j4FFuzLQV6L0fzbsEWyYa5wGI0tP3a9cWC1Pa0oJDZk1GjVJxKLmFYcLewclCUrRm9z/s320/scrapdestaqueconto5.gif" /></a></div>Ele disse pro patrãozinho, no dia anterior, que não carecia de pagamento naquele mês. Ainda tinha dinheiro que chegava até o final do próximo, no mínimo. Era sujeito que poupava e não era dado a luxos. Além do mais, não estava precisando de nada. Nem ele nem a irmã.<a name='more'></a><br />
– Mas Armandinho, aceita. Esse dinheiro é teu. É do teu trabalho, homem.<br />
<br />
– Não tem precisão, seu Pedrinho. Eu, para viver, só preciso de uns trocados. Com a graça de Deus nosso senhor, tenho até a casinha que o seu pai, que Deus o tenha, me deixou pra morar. E lá cuido da minha horta, das minhas galinhas... pra quê mais?<br />
<br />
– Ah, vai aceitar, sim. Não precisa agora, mas pode precisar depois. Se sobrar, deposita no banco. Ou compra uma bicicleta nova.<br />
<br />
O jardineiro tinha vergonha de estar recebendo o pagamento. Nem bem o corpo do patrão tinha esfriado e já estava ali o seu filho, com a mão estendida. Foi antes para não alongar o assunto que assinou o recibo de quatrocentos e cinqüenta reais e colocou o envelope com o dinheiro na pochete.<br />
<br />
– Confere, Armandinho.<br />
<br />
– Não, não precisa. O que o senhor diz que tem, tem.<br />
<br />
Então foi pedindo licença e montando na bicicleta. Não conseguia nem olhar bem nos olhos do patrão, que se despedia dele ali, na soleira da porta da cozinha, enchendo a cuia com erva mate. Já lembrava do finado seu Pedro, que o recebera como agregado ali muitos anos antes.<br />
<br />
Eram quase 10 quilômetros de chão para pedalar antes de chegar em casa, e precisava estar lá antes do anoitecer, para olhar as coisas da casa e se recolher. Gostava de dizer que dormia com os bichos e acordava com os bichos, porque o dia seguinte ia começar cedo.<br />
<br />
Foi pedalando pela estrada quase deserta e pensando na vida. Eram pensamentos distraídos, porque a vida, para ele, se resumia àqueles 10 quilômetros de estrada, à casa do patrão e à sua. Por isso podia ir pedalando e apreciando as árvores, a luz do sol passando pelas folhas, as nuvens no céu. Até a voz que sempre falava dentro de sua cabeça parecia estar em silêncio, e ele se sentia tão bem que até assobiava.<br />
<br />
Só quando chegou em casa ele abriu o envelope para guardar o dinheiro. Pensou em dar um pouco para que Jandira comprasse alguns mantimentos. Então tirou as cédulas do envelope e contou o dinheiro. Virou e revirou as notas, reordenou-as na palma das mãos e contou novamente. Havia ali algo perturbador: cinqüenta reais a mais.<br />
<br />
Como assim, cinqüenta reais a mais? – perguntou-se. Como aquela nota tinha ido parar ali? Foi até a irmã e mostrou o dinheiro para ela. Pediu que contasse também e confirmasse. Não havia dúvida: ali estavam quinhentos reais, nota sobre nota.<br />
<br />
E agora? – perguntava a voz em sua cabeça – e ele deve ter repetido a pergunta em voz alta, pois a irmã lhe sugeria que era só devolver o dinheiro.<br />
<br />
Devolver o dinheiro: uma hora para ir, outra para voltar, se ele fosse bem rápido. Quando voltasse, já ia ser noite fechada. Ele estaria cansado e teria que levantar cedo no dia seguinte de qualquer maneira, pois o trabalho esperava por ele na fazenda.<br />
<br />
– Vai ver ele nem se deu conta que tinha mais – sugeriu a irmã.<br />
<br />
Mas a voz em sua cabeça falava mais alto. Fazia perguntas que ele não sabia responder. E se o dinheiro fosse fazer falta para o patrãozinho? E se ele precisasse dos cinqüenta reais e não achasse a nota? E se saísse para jantar num restaurante ou para comprar um maço de cigarros? E se fosse pegar o dinheiro e ele não estivesse lá onde ele pensou que tinha colocado? E se pensasse que alguém entrou na casa e tirou o dinheiro de sua carteira? Não poderia pensar que esse ladrão era logo ele, o jardineiro?<br />
<br />
Seria uma desconfiança entre os dois. Talvez não desconfiasse o suficiente para perguntar a ele sobre o dinheiro, na manhã seguinte. Mas podia ser o bastante para fazer algum comentário com a mulher, ou com o vizinho. Então eles iam conversar um pouco uns com os outros e teriam a certeza de que fora ele mesmo. Chegariam à conclusão de que ele era desonesto. Pensariam que tinha contado o dinheiro logo que cruzara o portão e ali mesmo tivesse percebido a nota a mais. Achariam que ele tinha levado a noite toda pensando se devolveria ou não.<br />
<br />
A irmã via sua preocupação, seu silencio. Então preparou-lhe um chimarrão e o deixou sozinho à mesa enquanto cozinhava. De qualquer forma, pensava ele, quando devolvesse o dinheiro teria que dar muitas explicações. Era um sujeito correto, não queria que pensassem mal dele. A única coisa que tinha de seu, além da casinha que dividia com a irmã, era sua honra.<br />
<br />
Mas e se o patrãozinho não acreditasse nele? Se pensasse que ele tinha mesmo roubado o dinheiro e só se arrependera ao receber o pagamento que lhe era mesmo devido? E se acreditasse que tinha colocado a nota dentro do envelope por engano, mas pensasse que ele percebera logo o valor a mais e tinha fingido que não por esperteza? Que só tinha voltado atrás na manhã seguinte? Podia pensar que ele tinha se fingido de simples, mas que na verdade era ganancioso, que queria tirar vantagem. Ainda mais agora, que o velho tinha morrido e deixado a casinha para ele. Podia achar que ele estava desfazendo da bondade do pai e queria mais, isso sim. Que pensava que ter ficado com a casa ainda era pouco.<br />
<br />
Jandira colocou o jantar na mesa e ele comeu rápido. Até a comida tinha um gosto ruim naquela noite. Não quis nem café nem uma colherada de doce de leite. Foi direto para a cama, sem tirar o seu prato sujo da mesa e sem dar boa noite. E ali revirou-se de um lado para o outro, demorando para conseguir dormir.<br />
<br />
Quando conseguiu, foi pesadelo desenterrando uma parte escura de seu passado. A voz narrava o sonho para ele, mas ao mesmo tempo as imagens eram muito reais, ele estava revivendo o caso antigo. Percebia que a voz, na verdade, o comandava. Os policiais vinham buscá-lo na casa de seus pais, acusando-o de roubo. Ele jurava que não tinha feito nada. Os policiais diziam que tinham testemunha. Ele dizia que era um engano. O pai permitia e até ordenava que o levassem, se aquilo era mesmo verdade, porque na família dele não tinha ladrão. E num piscar de olhos ele estava atrás das grades na delegacia. Um lugar úmido, onde ficou durante uma semana, até pegarem o verdadeiro assaltante e se darem conta de que tudo era um engano. De que ele caíra em uma armadilha e nunca mais voltaria a ser o mesmo. O olhar das pessoas sobre ele nunca mais seria como antes.<br />
<br />
Acordou mais cedo do que o habitual, suando frio, despertado pela voz dentro da cabeça. Preparou ele mesmo a marmita com as sobras do jantar e saiu em sua bicicleta, sem café, antes mesmo de amanhecer. No caminho, ficava ensaiando uma maneira de contar ao patrão o que acontecera, de explicar tudo sem que se criasse nenhuma desconfiança. Enquanto a voz lhe soprava na cabeça outras idéias, outras perguntas. E se o patrão tivesse colocado aquela nota ali de propósito, como uma espécie de aumento? Nesse caso, o valor do recibo também seria maior. E se fosse uma espécie de teste da sua honestidade? Podia considerar que tinha passado na prova? Mas, ainda, e se aquela nota de dinheiro fosse outra armadilha para acusá-lo de roubo? De qualquer modo, o patrãozinho poderia chamar a polícia e dizer que ele era ladrão – sugeriu a voz, em tom de certeza. Assim, poderia até mesmo tentar recuperar a casinha que o pai tinha deixado para o jardineiro.<br />
<br />
Se fosse verdade, ele podia acabar preso, e até sua irmã iria ser mandada embora da casa, eles perderiam o pouco que tinham. A liberdade, o lugar para dormir, a horta. Até a bicicleta velha, que para ele estava muito boa, porque não queria sair por aí com uma bicicleta nova que só serviria para que os outros ficassem com inveja dele.<br />
<br />
Aquilo tudo lhe fazia sentir o peito apertado. Uma falta de ar. Uma vontade de chorar. Tentava não ouvir a voz dentro da cabeça, tentava pensar em uma forma de se explicar, e pedalava. De vez em quando, os olhos se enchiam de água só de pensar no que poderia acontecer.<br />
<br />
Chegou à fazenda quando o sol estava despontando, e esperou diante do portão por alguns minutos, antes de entrar. Do outro lado, os cachorros se agitavam e não sabia se seus latidos eram ameaças ou boas-vindas. Olhava para a casa através do portão e lembrava da janela da cela onde tinha sido preso quando era mais moço. Estava com medo de entrar. Medo do que aconteceria dali em diante.<br />
<br />
Mas como evitar o destino, quando ele já estava armado. Pensou que não adiantava fugir. Escaparia para onde? E faria o quê? Continuaria fugindo para sempre? Porque era claro que iriam atrás dele, era certo que o caçariam até o fim do mundo. E ele estaria correndo e correndo e pensando em Jandira, que era uma irmã tão boa. Fazia as faxinas e ainda ajudava em casa e na horta. O que seria dela sem casa?<br />
<br />
O negócio era entrar e tentar devolver o dinheiro, ver se o patrão aceitaria de volta e acreditaria nele. Tinha que fazer isso, mesmo que não pudesse ser de cabeça erguida. E se o patrão pensasse que ele não era direito, ele nem voltava mais. Agora, a questão da polícia não era bem assim. Se tivesse polícia no meio, ele teria que se defender. Tentou montar uma estratégia na cabeça, lembrando onde ficava a tesoura de poda, a enxada, o garfo do feno. Pensou em como passar pela soleira da porta da cozinha e pegar as facas de churrasco. Aquelas seriam suas armas, se não pudesse fugir.<br />
<br />
Conseguiu se acalmar um pouco, apenas o suficiente para ter a clareza de que fugir seria bem possível caso fosse necessário, e depois ele via o que iria fazer. Então ele abriu a porteira com a sua cópia da chave e foi entrando, cercado pelos cachorros que o rodeavam como sempre, pedindo carinho. Quase chorou de novo, pensando que talvez aquela fosse a última vez que os veria.<br />
<br />
Foi caminhando e, antes de chegar na porta da cozinha, que já estava aberta, com o fogão à lenha funcionando a todo vapor, já segurava a nota de cinqüenta reais na mão. O coração latejando no peito, nas veias e artérias. Ele viu que o patrão estava preparando um mate e que largava a cuia para cumprimentá-lo. Então, estendeu a mão com o dinheiro para o patrão, sem conseguir dizer nada, nem olhá-lo bem de frente.<br />
<br />
O patrão pareceu se divertir.<br />
<br />
– Que é isso, Armandinho? Tá rico, pra vir me dar dinheiro logo cedo?<br />
<br />
O jardineiro sentiu o coração bater mais forte e rápido. Não sabia se era de alegria ou de medo. Não sabia se o que o patrão tinha dito era brincadeira ou se estava querendo pegar ele no pulo.<br />
<br />
Então tomou coragem e olhou para o patrão, enquanto tentava encontrar palavras para se explicar.<br />
<br />
– Esse dinheiro veio a mais no envelope, patrãozinho, junto com o pagamento.<br />
<br />
O rosto do patrão era claro e simpático. Mal olhou para a nota de dinheiro que ele segurava.<br />
<br />
– São cinqüenta reais, patrão.<br />
<br />
O homem olhou bem dentro dos olhos de Armandinho, sorriu e disse que ele podia ficar com o dinheiro. Então, ele viu que tudo havia sido um engano, que a voz que falava dentro de sua cabeça tinha mentido.<br />
<br />
– São só uns trocados – disse o patrão –. Usa pra tomar umas cervejas.<br />
<br />
Foi então que ele pensou em tudo o que tinha e desatou a chorar, deixando o patrão sem entender nada.<br />
<br />
Ele chorava porque a casinha dele ainda estava lá, a irmã estaria em casa quando chegasse, e eles continuariam colhendo as verduras e as frutas. Ele ainda era livre para pegar sua bicicleta e ir trabalhar todos os dias.<br />
<br />
O patrão lhe deu um meio abraço que era mais um tapinha nas costas, com o cenho franzido, enquanto fazia o mate roncar. Encheu a cuia de água quente e lhe estendeu.<br />
<br />
– Que é isso homem. Deu pra chorar, agora?<br />
<br />
O jardineiro se desculpou, tomou o mate que lhe parecia mais doce do que nunca. Era de um gosto verde da cor do dinheiro, da cor das árvores; era quente e acolhedor e matava até a sede da alma. Desculpou-se, agradeceu, bebeu o mate e foi tratar dos canteiros, arrancar as ervas daninhas. Trabalhou o dia todo, como se aquela terra fosse dele e, antes de ir embora, passou na venda e usou uma parte do dinheiro para comprar uns biscoitos para os cachorrinhos. No caminho, bebeu uma cerveja no bar, fez um brinde ao patrão e ao patrãozinho. Ainda sobraram uns trocados, que ele deu de presente para Jandira comprar o que quisesse.<div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-23804022248331114442009-11-01T11:21:00.004-02:002009-11-01T11:35:45.240-02:00Uma puta escritora<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhauzKfP4Nx5lt6KNZzuklpEbFmJI8usoa0TX6Umm9iFgjbmA-NueqcKKRfMMecZo47K9ajnPufWpKxBZO4N68HpeOrVJCdKmpxqMofkT5zZUYUtZE7FI5bUZyvQa6B0jRDwNxkbYRv34Jn/s1600-h/filhamaeavocapa.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhauzKfP4Nx5lt6KNZzuklpEbFmJI8usoa0TX6Umm9iFgjbmA-NueqcKKRfMMecZo47K9ajnPufWpKxBZO4N68HpeOrVJCdKmpxqMofkT5zZUYUtZE7FI5bUZyvQa6B0jRDwNxkbYRv34Jn/s200/filhamaeavocapa.jpg" /></a></div>Conheci ontem, na <i>55ª Feira do Livro de Porto Alegre</i>, uma pessoa extraordinária. Gabriela Leite, que já no título de seu livro se define como <i><b>Filha mãe avó e puta.</b></i> Mas ela é muito mais do que isso, ela é a fundadora do movimento das prostitutas no Brasil, criadora da ONG DaVida, da confecção Daspu e está aí escrevendo o seu nome nas histórias da literatura brasileira da moda. Coisa que festejo com ela, já que a literatura é também a promoção do entendimento entre as pessoas, e o preconceito é coisa cada vez mais <i>demodé.</i><br />
<a name='more'></a>Está cada vez mais na moda ser o que se é, assumir o que se é. Paga-se o preço por isso, mas pela conversa que tive com ela e pelas páginas que já li de seu livro, ficou a certeza de que o preço por não se assumir as rédeas do próprio destino pode ser muito maior.<br />
<div><br />
</div><div>O que Gabriela Leite fez com seu livro, escolhendo este título e colocando seu próprio rosto na capa, não foi diferente de tudo o que fez ao longo de toda a sua trajetória. Tendo saído de uma família de classe média, e de um curso de filosofia na USP, ela decidiu seguir o caminho da prostituição e foi feliz.<br />
</div><div><br />
</div><div>Ela pagou o preço por ser o que é, cresceu, aprendeu. Hoje se diz prostituta aposentada (sem aposentadoria), e luta pelo direito da classe. Em seu livro e em seu discurso, ela revela um carinho imenso pelos homens, e diz que ao longo de sua carreira sempre recebeu o retorno desse carinho.<br />
</div><div><br />
</div><div>Conhecê-la é fascinante, pois ela uma pessoa que se fez, não é em absoluto o subproduto dos ambientes onde se criou e onde decidiu viver. Trata-se de uma pessoa que transitou por muitos meios e absorveu o melhor de todos eles, assumindo total responsabilidade por suas escolhas. Uma pessoa muito culta, que discute Machado de Assis, Erico Veríssimo, e sexualidade com desenvoltura e opiniões seguras e próprias. Está aí para acabar com o preconceito de muita gente.<br />
</div><div><br />
</div><div>E é uma boa escritora, que começou com um livro autobiográfico (o que é algo muito difícil de se fazer) e, espero, tenha muitas outras boas histórias para contar.<br />
</div><div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9153501357965134489.post-72021645082329627852009-10-31T23:55:00.000-02:002009-10-31T23:55:52.212-02:00Vozes da cidade #4<div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><b>Transcrições selecionadas de registros feitos por 10 gravadores itinerantes dentro do Brasil:</b><br />
</div></div><div style="text-align: center;"><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><br />
</div></div></div><div class="separator" style="clear: both; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: left;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEidSUkDTvdYpyVysagMkMCvAAvvF-9Vp7gbUq-BzlJ7_Dzw70SJPUWbl3GHiOPdNhsWrOQMukStsRsCebXhhX18PoHW20Wq-lJw22Sx6duB3YhWQ1ICx0MprvJWg-_GtRNxd5jpW-p0dpnt/s1600-h/arrow-ltr.png" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEidSUkDTvdYpyVysagMkMCvAAvvF-9Vp7gbUq-BzlJ7_Dzw70SJPUWbl3GHiOPdNhsWrOQMukStsRsCebXhhX18PoHW20Wq-lJw22Sx6duB3YhWQ1ICx0MprvJWg-_GtRNxd5jpW-p0dpnt/s200/arrow-ltr.png" /></a><span style="-webkit-text-decorations-in-effect: underline; font-size: small;">domingo - 25/10/2009 - 9h25 - <span style="-webkit-text-decorations-in-effect: underline; font-size: small; font-weight: bold;">Rio de Janeiro/RJ - </span><span style="-webkit-text-decorations-in-effect: underline; font-size: small;">Praia de São Conrado</span></span><br />
</div><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><br />
</div></div></div><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: left;"><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span style="font-size: small;"><b>MULATA</b></span>: – Ih, qualé, <i>preiboy</i>? Tá me secando?<br />
</div></div></div><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: left;"><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><b><span style="font-size: small;">GAROTO: </span></b>– Desculpa aí, princesa. Se eu tô te secando é porque pensei que tu tava molhadinha...<br />
</div><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><b>MULATA: </b>– Aí, ó! Se liga, maluco! Criança que brinca com fogo é que se molha de noite nas cobertas...<br />
</div></div></div><div class="blogger-post-footer"><br/><br/>
leia mais em <a href="http://versoespreliminares.blogspot.com" target="blank">versoespreliminares.blogspot.com.</a></div>Rudiran Messiashttp://www.blogger.com/profile/18031827598815302496noreply@blogger.com0