sábado, 3 de outubro de 2009

Farewell [conto]

Foi você quem me ensinou, Pedro, que terra a gente cava com as mãos.

Que a gente planta e espera.

Afundo meus dedos e sinto a textura, o cheiro, a sensação confortável de cada grão.

E uma minhoca se enrosca entre meus dedos, gorda, anelada.

Lembro de quando plantamos as primeiras sementes. Tudo aquilo de arar a terra e esquecer os planos, a vida lá fora. O futuro está na semente, você dizia. Bastava esperar. Você ainda pensa assim, Pedro? Ou você mudou de idéia, depois de todos estes anos? Diante desta luminosidade de hoje? Suas cores são muito pálidas, Pedro. Eu já vejo tudo mais carregado de magenta. A velhice faz isso com as córneas da gente, mas você não percebe. Você não vê cor, Pedro. Nunca viu de verdade. Apenas achava que sim, mas para você foi sempre tudo muito preto-e-branco.

Olha as cores da nossa horta, querido. A terra fofa, fofa. Eu enfio a mão no chão e os grãos se acumulam entre as unhas e a carne. Terra rica: tão marrom que chega a puxar para o vermelho. Os pés de hortaliça brotando dela bem cheios, que chegam a dar gosto só de ver. Alface crespa, alface mimosa, tomate gaúcho, repolho, couve, cenoura, pimentão. Tudo tem, quando chega a época. Olha lá no fundo, o nosso pomar: sente o cheiro suculento das frutas, Pedro. O perfume. Temos macieira, pereira, romãzeira, laranjeira, amoreira, pitangueira. Tanta variedade de frutas, que nem dá tempo de comer tudo. Elas caem no chão: suas polpas carnudas apodrecendo sobre a terra. E de que adianta, Pedro, se não tem ninguém para colher? Se não sobrou ninguém para mordê-las, apenas eu, com meus dentes postiços, minha boca murcha. Com minhas mãos ásperas de cavar e cavar e enterrar e esperar que ainda brote alguma coisa ao invés de só ver tudo apodrecendo na minha volta.

Pois o que fica esquecido é aquilo que acaba apodrecendo. Com fruta é assim. Com pensamento é assim. Com bicho é assim. Até com gente é assim. E com as lembranças, também. Tudo deteriora. Por isso eu passo o dia todo lembrando e lembrando. Eu sei que isso te chateia um pouco, sempre te chateou. Mas é o que me impede de acabar louca. Evita que eu me convença que até Deus esqueceu de nós aqui neste fim de mundo. Pois foi assim que acabamos, aqui, isolados. Um dia tivemos filhos, tivemos bichos, tivemos amigos. Mas e agora, Pedro, para onde eles foram? Antes as crianças corriam pelo quintal, arrancavam frutas do pomar, vegetais folhosos da horta, flores do jardim da frente da casa. Hoje elas correm pelo mundo, Pedro. Os meninos cresceram e foram para a guerra. Temos que aceitar mais este fato. Isso é que é. A vida é feita de fatos que a gente deve aceitar. Como fazem as minhocas, gordas, aneladas. Elas cavam a terra e comem e modificam a terra e devolvem o pó ao pó; elas nascem, se dividem e morrem. E para quê, afinal de contas, heim Pedro? Porque sim. Porque a vida é ciclo, começa e acaba, começa e acaba. A vida é orgânica, é gosmenta, é natural. Como uma grande minhoca, gorda, anelada. Eu sei – sei melhor do que você, Pedro. A natureza me ensinou. A natureza me fez sangrar a cada ciclo, sempre me lembrando me lembrando me lembrando que eu estava voltando aos poucos para a terra. Que estava dando de mim. Enquanto a gente plantava todos estes pés no chão, enquanto as minhocas arejavam o solo, enquanto a gente enterrava nossa vida aqui.



Agora continuo cavando, como um anelídeo. Me dá vontade de comer essa terra que eu tiro do buraco, Pedro, mas é desespero, só. Porquê eu não sei mais pelo que esperar. Cavo, cavoco, escavo. Continuo tirando a terra da terra, porque você me ensinou assim. Nossa vida em comum nos ensinou assim. Minhas unhas quase se revirando, Pedro, de tanto cavar e cavar. Você não imagina a dor. A dor, Pedro. De cavar e cavar e não ter mais semente alguma. De trabalhar a terra e não ter nada de bom para colocar dentro dela, apenas o que restou. O que apodreceu. O que foi esquecido. Mas que eu não esqueci. Que eu nunca vou esquecer, Pedro. Mesmo com o tempo, com a doença, com a morte. A morte nos faz esquecer, Pedro?

O buraco vai aumentando, meu amor, e com ele a sensação de vazio. Aqui e ali minhas falanges encontram uma pedra destas grandes, que eu seguro no bojo de minha mão. Eu sinto o peso, eu sinto a dureza, o frio, Pedro. Lembra a dureza, o peso e o frio das madrugadas, querido. Quando o dia amanhecia e eu do seu lado amanhecia também. Aquela gosma amarga que a gente sente na boca, de ficar tanto tempo com ela fechada, sem falar nada. Sem beijar. Sem o gosto doce e ácido do sumo de uma fruta na mucosa. Pois é quando a vida é gosma. E a dor no pescoço, a dor nos quadris, a dor na coluna vertebral, de ficar sentada na poltrona ao lado de sua cama. Esperando. Você. Acordar. Reagir. Voltar. Enfim.

Tanto remédio, tanto copo d`água. Eu levantando a sua cabeça, inclinando-a um pouco para colocar dentro de sua boca os comprimidos, como se fossem sementes na terra. Para brotar o quê? Uma palavra, um gemido, um ai? Mas você sempre foi tão silencioso, Pedro. Você sempre gostou tanto de dormir. Foi sempre eu falando e falando e falando. Você quieto, no seu mundo. Com seus segredos e histórias e silêncios e lembranças enterrados. Seus pensamentos. Suas orações. Eu nunca perguntei se você rezava, Pedro. Às vezes desconfiava que sim. Que no meio daquele silêncio você falava com Deus, já que não podia mais falar comigo. O que resta, Pedro, para alguém que fica na cama o dia todo, que não planta mais, que não cava mais, que não colhe mais, a não ser acreditar em Deus? Mesmo você, que nunca acreditou em Deus, que só acreditava na ciência. Você, que mesmo assim me ensinou tanto.

Eu continuo cavando e cavando. Como você me ensinou, com as mãos. Com elas também colho os frutos. Plantando. Colhendo? Continuo esperando e colocando comprimidos na sua boca. Mas para quê, Pedro, se você não os engole mais? Ainda rezo, Pedro, com minhas mãos de cavar. Mas Deus parece ser como você: não responde mais. Mantenho a fé: eu sei que ele está em algum lugar. Deus está em todo lugar. Nessa terra, também. Nessa terra que a gente abençoou com nosso trabalho, que a gente regou com o suor, com o sal de nossas peles. Tanto demos que nosso couro curtiu. Enrugou-se. Minha mão escura e enrugada como um tronco de árvore, Pedro. Quando a enterro no chão eu sinto como se estivesse me plantando aqui. Não dá nem vontade de se mexer. Só de ficar parada. Como você, em cima da cama, com alguém me lavando como te lavo. Me medicando como te medico. E rezando por mim, porque o buraco é grande, a tristeza é grande, a saudade é grande. Isso tudo exige muita força. E tirar força de onde, Pedro, senão do nosso pomar, da nossa horta, do nosso jardim? Quando tudo o que eu quero é deitar com você e ficar quietinha, mas ainda não tenho a sua calma, a sua serenidade, a sua paz. Eu ainda não atingi a quietude e continuo cavando.

Depois de uma vida, depois do outono, depois do anoitecer. Quando tudo passou, caiu, escureceu. Então a vida amanheceu de novo. Mas a terra estava fria. A casa estava fria, a cama fria. A sua pele, meu amor, estava fria. E tentei te aquecer com um pano embebido em água morna. Tentei de aquecer com meu abraço. Com minhas lágrimas. Dia após dia.

Até aceitar. Que você havia descansado. Que eu estava só. Que era preciso continuar cavando. Com minhas próprias mãos, punhado por punhado.

Foi você quem me ensinou, Pedro, que terra a gente cava com as mãos.

Que a gente planta e espera.

É preciso cavar tanto, tanto. Para, depois, só então, com as mãos sangrando, rachadas, descansar. Como você, Pedro, descansando, agora, no nosso quintal. No nosso pedaço de chão, na nossa terra. Agarro um punhado dela com as mãos e sinto a textura, o cheiro, a sensação confortável de cada grão.

E uma minhoca se enrosca entre meus dedos, gorda, anelada.

Abro a mão e deixo que o primeiro punhado de terra caia sobre o seu corpo.

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