quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Feliz aniversário, Sibila [conto]

Hoje Sibila faria 33 anos, e não lembrei da data para ninguém. Nem para o meu marido, que tinha tanta pena dela. O João Carlos sempre foi tão compreensivo, pedindo que eu tivesse mais paciência. Afinal, ela era minha irmã. Também não fui ao cemitério. O dia não é para ser motivo de comemoração e muito menos de tristeza. Não me envergonho de admitir que sua morte foi um verdadeiro alívio para todos nós. Mesmo morta, às vezes ainda sinto sua presença, e é como se ela estivesse prestes a se materializar a qualquer momento, junto à cama de nosso filho, neste quarto que um dia foi dela.

Coincidência ou não, hoje Carlinhos teve um ataque de fúria e revolta. Gritou e mordeu os lábios até que saísse sangue. Agora dorme por causa dos calmantes que diluí no achocolatado de seu lanche da tarde. O enfermeiro já deu o seu banho diário e trocou suas fraldas antes de ir embora. Na máquina, os sinais vitais parecem estáveis. Sua expressão é tranqüila, mas não sei por onde andam seus sonhos. Antes do acidente de carro, ele era um menino com toda a vida diante de si e agora tudo o que podemos lhe oferecer são os canais da televisão a cabo, o aparelho de 42 polegadas sempre ligado diante da cama.

Talvez eu esteja vivendo o futuro maldito que se refletia para mim nos olhos ameaçadores de minha irmã. Se ela estivesse entre nós, talvez se sentisse satisfeita de nos ver assim. Afinal, desde que éramos pequenas eu sempre fui a única pessoa na casa de quem ela demonstrava não gostar. Porque enquanto todos os outros viam nela uma pobre vítima, eu era a única a saber que Sibila era apenas um monstro de ego com síndrome de down, deitada em uma cama hospitalar aos cuidados constantes de nossa mãe, a quem ela consumiu até a morte.

Mamãe morreu sentada ao lado de Sibila, que nem se dera conta do ocorrido e ainda se babava, olhando para o teto, quando cheguei lá para levar mantimentos e ver se elas estavam bem. Foi então que precisei trazê-la para cá e deixá-la neste mesmo quarto. Cuidada pelos enfermeiros, ela viveu aqui por mais dois anos, antes de morrer em decorrência de complicações cardíacas. Eu ainda estava grávida de Carlinhos e lembro como ela me olhava de sua cama, com uns olhos que pareciam me culpar por eu ter nascido normal, por eu ter casado e estar formando minha família. Me pergunto se alguma vez ela teve consciência de que eu estava grávida, e o que ela desejaria para meu filho se tivesse colocado os olhos sobre ele.

Hoje trabalhei o dia inteiro na casa, tentando varrer sua presença de cada canto, tentando tirá-la de minha memória. Rezando para esquecê-la, para que ela fosse para a luz e nos deixasse em paz. Deixei tudo em ordem: a mesa posta, a comida no forno. Liguei para o João Carlos e perguntei se ele iria demorar para chegar em casa. Então sentei nessa poltrona e fiquei olhando para o meu filho em cima da cama. Olhei para ele e percebi o quanto estava cansada. Tive uma vontade de dormir para sempre, de deitar no seu lugar e não fazer mais nada. Então senti meu corpo imóvel, como se eu não fosse mais poder levantar dessa poltrona e me deixei tomar por essa sensação relaxante. Me dei conta de que havíamos ficado tetraplégicos junto com Carlinhos, com braços e pernas imóveis, a epiderme insensível. Só cabeça pensante e corpo imóvel – os sonhos largados de lado.

Nossa vida tinha se transformado na vida de Sibila. Era como se fosse ela, ali, naquela cama. No lugar de nosso filho, olhando para mim como se eu tivesse sido a culpada pelo acidente. Eu vi o seu olhar acusador nos olhos de Carlinhos durante o ataque que ele teve pela manhã. Quando enfim se acalmou, meu filho ficou olhando para o teto, babando, com a boca aberta como a de Sibila. Agora ele está tranqüilo, e eu estou aqui para guardar o seu sono, esperando que João Carlos para o jantar. Mas o tempo passa e meu marido parece que não chega nunca. Estou aqui nessa poltrona, cansada, o sono começando a pesar, quase incontrolável.

Minhas pálpebras cerram mas torno a abri-las, lutando para permanecer desperta. A comida ainda está no forno. Ouço os passos no corredor e, de repente, vejo Sibila entrar no quarto com seus passos claudicantes. Ela caminha com dificuldade, braços e pernas moles. Chega perto da cama de Carlinhos e olha para ele sorrindo. Eu tento gritar, mas de minha garganta sai apenas um assobio fino, quase inaudível. Ela sacode o corpo de Carlinhos tentando acordá-lo. Vejo os olhos de meu filho se abrindo, o medo. Tento me levantar para impedir que ela lhe faça mal, mas meu corpo não responde.

De pé, ao lado da cama, ela olha para mim e ri. Está com sua roupa de festa, chapéuzinho de papelão, bate palminha com as mãos descordenadas. Depois olha para ele e beija-o no rosto. Puxa-o pelo braço com sua força descomunal, como se ele fosse um boneco de pano. Diz para ele com sua voz fanha: "vem com a tia" e o carrega junto consigo em direção à janela. Escuto o apito de emergência dos aparelhos que mantêm a respiração de Carlinhos. O corpo de meu filhinho está sendo arrastado pelo chão. Junto todas as minhas forças para segui-los e chego a me arrastar também, mas ainda estou longe. Escuto o barulho da chave virando na fechadura. João Carlos está chegando, mas não sei se vai dar tempo. Ela já está dependurada no parapeito com meu filho e parece prestes a saltar em direção à luz.


<< VERSÃO 1 >>

2 comentários:

Rudiran Messias disse...

Notas sobre a versão 1:
• Este conto ainda não está pronto.
• Lido e discutido na Oficina Literária Charles Kiefer em 11/12/2009.
• A história é essa, mas temos um problema estrutural aqui. O uso de um narrador em primeira pessoa que se dirige a um leitor virtual é um recurso artificial.
• Narrador distanciado/frio em relação aos fatos: pode ser entendido como o cansaço e a desesperança da personagem. Mas chegar a esta conclusão talvez exija uma certa reflexão por parte do leitor e não é totalmente convincente.

Possibilidades para novas versões:
• Escrever o conto em primeira pessoa.
• Escrevê-lo em formato de diário, estando a personagem já presa ou institucionalizada.
• Escrever o conto em formato de inquérito.

Vícios de linguagem / limpezas necessárias:
• verbos ser/estar usados em demasia
• uso abusivo de demonstrativos

Rudiran Messias disse...

Sobre o artifício do leitor virtual:
• Vide Umberto Eco, em "Obra aberta" e "6 passeios pelos bosques da ficção"