quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Cuidando de dona Carolina [conto]

Perfuro com a agulha a pele frágil do braço de dona Carolina, que não oferece resistência alguma. Ela tem o olhar cada vez mais distante. É apenas o restinho de uma vida que ronca sobre a cama a intervalos cada vez mais curtos. A textura lembra um plástico fino e brilhoso que o tempo tivesse estendido sobre seu corpo. Aperto a seringa vagarosamente e vejo meu sangue negro escarlate se injetando e começando a desaparecer dentro de sua veia. Penso que desta vez deve ser o suficiente. Ela me olha agradecida e volta a dormir. Daria mais, se fosse preciso, para acabar com seu sofrimento. Para que ela tivesse mais da força de que precisa. 
Este é o meu trabalho: cuidar de idosos, de imobilizados e de doentes terminais. Também os estimulo a desabafar, e isso faz com que se sintam bem. Escuto as histórias de suas vidas, sejam elas longas ou curtas, interessantes ou comuns; suporto suas queixas, seus rancores, o mal-humor de quem já sabe que o fim está próximo; sou testemunha do desespero, da dor, do remorso de cada um deles. Limpo suas lágrimas e depois banho seus corpos, mudo suas fraldas, limpo suas fraldas. Administro a medicação a intervalos constantes e pré-determinados. Faço tudo o que for preciso na hora precisa. Troco seus sacos de urina e de fezes por outros novos, quando é o caso – e não tenho nojo, nem dos seres humanos como eles são, nem dos fluídos que excretam. Quem trabalha com isso precisa abstrair tudo e ver sobrar diante de si a pessoa mesma, paciente. Quando se conhece o ser humano, de uma forma ou de outra acabam se formando laços, mesmo quando se mantém o necessário distanciamento profissional. Hoje eu conheço a história de dona Carolina, essa senhora que criou os filhos praticamente sozinha, essa velhinha mais querida, cuja história só conheci porque vim para cá trabalhar como enfermeiro, na casa de seu filho.

É assim o trabalho de pessoas como eu. Não falo pelos que batem ponto nos hospitais: eles têm a vida mais corrida e mal podem dar atenção de verdade aos que estão sob seus cuidados. Eles fazem plantão e dormem poucas horas por dia. Trabalham em dois ou três hospitais diferentes para poderem ganhar razoavelmente bem a vida e, no meio tempo, vêem coisas que fariam qualquer um ficar com os olhos e o coração duros. Acabam passando por várias donas Carolinas por dia e nunca chegam a conhecê-las de verdade. Entendem apenas suas dores do momento, seus laudos médicos, suas prescrições e seus remédios. E os vêem partir, vivos ou mortos, como se atuassem diante dos portões de embarque de um aeroporto – ambiente asséptico de chão brilhante, com faxineiras passando de lá para cá. Eles são a linha de frente no campo de batalha: não podem se deixar tocar assim, tão facilmente. Eu já trabalhei em hospitais, e voltei pra casa com um coração rochoso. Cansado, desgostoso da vida, depois de tantos e tantos plantões e escalas uns atrás dos outros. Por isso eu sei como é e não falo por eles. Só falo por mim e pelos pacientes dos quais tomo conta– eu também respondo por eles.

Hoje atendo em domicílios e só de ouvir um gemido eu já sei quando o que eles sentem é mesmo dor. Eu conheço a dor e o sofrimento de perto. Sei quando ela é física, quando pode ser tratada com medicamentos. Eu sei quando o remédio é apropriado e quando posso aumentar a dose. A experiência me ensinou a reconhecer os sintomas. Odores corporais, ruídos, interjeições, esgares. Estudei a linguagem da dor e seus sinais. Quando chego em uma casa pela primeira vez, conheço pelo cheiro o tipo de paciente que vou atender e nunca me engano. Também não me nego, por mais difícil que seja. Inclusive os pacientes mais complicados, que outros recusariam ou dos quais só aceitariam dispondo de mais um técnico para dar apoio. Desses eu faço questão de tratar enquanto tiver forças. Eles são os meus queridos e prediletos. Sinto que só eu mesmo poderia cuidá-los. Quando olho em seus olhos pela primeira vez eu reconheço que são realmente os que mais precisam de mim. É uma espécie de dom que eu tenho, não sei, algo que veio no meu sangue, mesmo. Deve ter vindo. Foi assim com a dona Carolina e foi assim com todos os outros que vieram e se foram antes dela.

Lembro do dia em que cheguei nesta casa, em um final de tarde e, antes mesmo que seu filho dissesse qualquer coisa, eu já sabia que o câncer comia a velha por dentro. A história não muda muito: Roberto me contou sobre os tratamentos em cima de tratamentos, sobre o longo período no qual os médicos haviam considerado que ela tivera remissão completa, sobre as recidivas e quimioterapias que a deixavam com a imunidade cada vez mais baixa. Disse que a mãe já tinha mais de 80 anos, as defesas do organismo já não eram mais essas coisas, sabe como é. Cedo ou tarde o corpo da gente se rende, ainda que de pouco em pouco. Era esse o estado de dona Carolina, e por isso fui contratado para tomar conta dela. Mesmo com o quadro precário de sua saúde, e eu disse sim para eles, a quem eu tinha sido indicado por amigos da família. Então ele me trouxe até este quarto e pude conhecer essa senhorinha ainda falante, embora já acamada. Tinha um olhar cansado, mas que ainda guardava o brilho de uma vivacidade quase teimosa. Ela sorriu e parecia já gostar de mim. Não se dera bem com as enfermeiras anteriores, com as quais brigava muito por coisas banais – ao ponto de fazê-las perderem a cabeça e pedirem demissão – e por isso eu havia sido chamado. Quando olhei bem para ela, senti que dona Carolina queria que eu a amasse como um filho e cuidasse dela. E é o que faço.

Com o tempo conheci Anita, sua nora. Ela trabalha tanto quanto o marido, mesmo estando grávida do segundo filho. Virei parte da família e fico na casa todos os dias até que um deles chegue, o que só acontece lá pelas 20 horas. Durante o resto do dia ficamos apenas nós dois em casa, e assim ela já me contou praticamente toda a sua vida. Teve uma vida diária pacata, eu diria: casara cedo com o homem que fora seu marido até o fim de seus dias. A morte do marido ocorrera poucos anos antes, e desde então ela só fizera definhar mais e mais. Esse homem enfrentara com ela o câncer, vira com ela belas paisagens de países distantes e de cidades do interior. Juntos, construíram uma casa e uma família. Seu único defeito era ser mulherengo. Uma vida muito corriqueira, essa que ela me narrava. Exceto pelas viagens ao exterior, das quais lembrava com riqueza de detalhes. Eu a estimulei e explorei esses relatos, saboreando com ela cada textura, cada cheiro. Ouvindo suas histórias. Guiado por ela, fui à Veneza, andei nas gôndolas e senti o cheiro ruim da água de certos canais. Passei a mão nas paredes com pequenas rachaduras, tinta descascada e manchas deixadas pelas marés mais altas nos prédios antigos. Senti a ansiedade do movimento frenético de Picadilly Circus. Tive em minhas mãos a água cristalina de um lago canadense que, visto do alto de uma montanha no início do outono, tinha a perfeita cor azul-turquesa dada pelas algas durante o degelo. Senti no lombo a areia fina de Jericoacoara, trazida pelo vento forte, e nos pés a areia dura da praia do Cassino, depois da chuva – aquele visual retilíneo de praia sem fim.

Com o tempo, acabamos ficando tão íntimos que suas histórias se acabaram e faz tempo que ela começou a se repetir. Eu as escutei mais de uma vez, queria lembrá-las, guardá-las comigo. Algumas delas, ouvi inúmeras vezes, com todas as suas possíveis variações. Eu as ouvi tantas vezes que poderia escrever um livro, e talvez o faça com a história de algum paciente, quando me contarem algo de realmente novo e singular. Quem sabe a coletânea dos melhores momentos de cada um deles. Talvez o livro venda bem e nesse dia eu deixarei de ser enfermeiro e me tornarei escritor. Enquanto isso, tenho a paciência de ficar escutando e escutando, como se estivesse lendo algum livro interessante. Como os livros que tenho lido agora que dona Carolina está realmente mal e não consegue mais falar. Eu leio tudo o que me cai nas mãos, e eles realmente tem uma vasta biblioteca na casa, de onde tomo emprestado um exemplar por vez sem que eles ao menos se dêem por conta. Já li dos mais diversos e tudo me interessa, fazer o quê? Ler e ler e ler. Leio até em voz alta para dona Carolina, e sei que ela gosta muito do que ouve. É curiosa como eu e também gosta de uma boa história. Ela não diz nada, mas eu sei que ela gosta porque vejo pelas expressões faciais. Hoje acabei de ler para ela um livro de contos de Poe e percebi que estava assustada.

Aperto a ampola da seringa até o fundo e vejo meu sangue negro escarlate desaparecer por completo em sua veia. Sangue do bom, para lhe dar mais da força de que precisa. Puxo a seringa e pressiono um disco de algodão no lugar da punção. Se eu não fosse muito experiente, deixaria marcas visíveis. Ali ficará apenas uma pequena mancha que desaparecerá em meio às manchas da velhice. Um ponto final escarlate, escrito com tinta vermelha de escrever histórias. Minha amiga abre os olhos com dificuldade e me agradece sem palavras. Sinto que pode ser pela última vez, talvez não passe de hoje. No fundo deles vejo que eles mal olham para mim. Enxergam outras dimensões, têm outra profundidade, como se vissem o fim; como se enxergassem até o ponto onde nossas histórias têm o mesmo desfecho.

Daria a ela um pouco mais de vida, se pudesse. Mas, além do meu sangue, eu só posso lhe dar um beijo de adeus. Digo baixinho em seu ouvido que está livre para ir embora quando quiser e ela adormece em meio a roncos moribundos. Guardo a seringa em minha pasta para descartar em um local seguro, recoloco o livro de Poe na estante e volto para o quarto. Dentro de alguns minutos eles devem chegar em casa. Falarei sobre a gravidade do quadro de saúde de dona Carolina e seu filho Roberto vai ficar ao lado dela, velando seu sono. Talvez chame o médico da família. Anita preparará o jantar e trará um prato para o marido. Insistirá para que ele coma. Tentarão alimentar dona Carolina pela última vez, mas ela deverá comer pouco. Ligarão para alguns parentes e amigos mais chegados, para que façam as últimas visitas. Cercada por essas pessoas, ela ainda conseguirá abrir os olhos mais uma vez, mas sem poder articular nenhuma palavra. Durante a madrugada haverá choro e desespero. A morte dos outros vai além da aceitação humana. No dia seguinte, o enterro será providenciado. As feridas ainda vão demorar para cicatrizar. Passado o período de luto, o quarto já estará sendo preparado para o neto que dona Carolina não chegará a conhecer.

Quanto a mim, eu continuarei por aí, sendo indicado para trabalhar na casa de familiares e conhecidos. Dentro de duas semanas, no máximo, eu já estarei cuidando de outro paciente.

1 comentários:

CESAR CRUZ disse...

Enigmático. para que diabos é esse sangue que ele injetava na velha? Assim é um bom conto, deixa coisas sem resposta para a reflexão de cada leitor.

Parabéns

Cesar Cruz
SP