quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Bonequinho vodu
ou
O menino das agulhas [conto]


Eu agüento tudo, meu filho. O isolamento, a servidão, a vergonha. E já fui longe demais, muito além do que imaginaria que me fosse possível. Tudo para cuidar bem de ti, em cima dessa cama, com o olhar amargo que me culpa pelo acidente; tudo para cuidar do teu pai, que acorda todos os dias, toma o café que eu preparei para ele, segue para o trabalho, tem uma vida normal e volta tarde para casa, com o olhar frio e sem desejo para mim.

Bem que eu queria dizer que não o culpo. Eu até posso entendê-lo, fazendo muita força para tanto. Eu o entendi durante anos. Mas a culpa, a gente não se livra dela. A culpa se reflete nos olhos dos outros o tempo todo: ela volta para nos lembrar que a história seria diferente se não tivéssemos feito o que fizemos, e nos ensina que tudo tem uma conseqüência. Nos faz aprender na carne.

Mas se ele não fosse tão sangüíneo, tão vivo, tão louco em sua gana de viver como se cada dia fosse o último. Quem sabe tu ainda serias uma criança normal, caminhando entre as outras no colégio. Eu também, estaria trabalhando, teria um círculo de amigos, um corpo saudável. Eu ainda seria uma mulher elegante, a mesma Susanna por quem teu pai se apaixonou um dia, aquela mulher linda que tinha força no olhar e não hesitou em sacrificar o próprio corpo para te colocar no mundo. Se ao menos ele não tivesse acelerado tanto, sempre correndo para tudo. Se tivesse feito como pedi e dirigisse mais devagar.

Eu já tinha proposto de sairmos no dia seguinte, depois que a chuva passasse – mas ele sempre foi tão teimoso. Ele queria chegar na serra antes do entardecer para comemorarmos o nosso aniversário de casamento. Tinha reservas para o jantar no mesmo hotel de nossa noite de núpcias. Eu vi o céu nublado, a noite fechando, a pista molhada, os faróis do carro se refletindo no asfalto, tudo passando rápido. Eu até comentei com ele – mas o Augusto ficou tão irritado que começou a brigar comigo como sempre fazia e faz até hoje. Dava gritos dentro do carro. Não parava de falar e reclamar e discutir. Eu só respondia que estava com medo, e isso parecia que fazia acender nele um instinto sádico que pisava mais no acelerador, costurava entre os carros da rodovia e gritava comigo sem se importar contigo no banco de trás. Lembro dos teus olhinhos assustados, do teu rostinho culpado, como se nós estivéssemos brigando por tua causa. Lembro do teu choro sentido, eu tentando te acalmar.

Naquele dia um caminhão bateu de frente em nossa família e começamos a nos despedaçar. Virou um destroço, uma montanha de lata amassada, de onde nos tiraram por milagre, cobertos de sangue e feridas, com tantas fraturas das quais ainda tentamos nos recuperar. Traumatismos por todo corpo, alguns sem cura. Por isso tu nos culpa, e eu te entendo. Quem não entende é ele, o teu pai. O Augusto uma hora estava no volante, nos guiando pelos perigos da noite à toda velocidade, noutro instante estávamos em mesas de cirurgia, e hoje ele anda pelo mundo enquanto nós ficamos presos dentro de casa, imóveis, tetraplégicos. Tu nesta cama e eu te servindo. Mal posso botar o pé para fora de casa. Se te deixo com uma enfermeira, sempre dás um jeito para que ela nunca volte, tratando-a mal e mostrando teu lado maligno, ofendendo-a do jeito que sabes fazer para ter certeza de que és odiado. Furioso, cruel como o teu pai. Saíste igualzinho a ele, e és para mim como ele sempre foi: impiedoso comigo. Mas um dia vais aprender. Farei tudo para que aprendas que o mal que fazemos volta para nós, do mesmo jeito que ensino agora para o teu pai. Porque é melhor que uma mãe ensine do que deixar a vida ensinar – a vida sabe ser ainda mais cruel do que tu, meu filho. Com toda essa maldade, ainda és ingênuo diante dela.

Eu também aprendi com minha mãe, que aprendeu com a mãe dela. Um dia cheguei em casa e lá estavam as duas para me passar o conhecimento secreto de nossa linhagem. Diante delas, na mesa da cozinha, estavam os gravetos, o musgo, os retalhos de tecido, as penas e botões. A vovó me mostrou um dos bonecos e me disse: "Mira, niña! Este es su muñeco vudú". O boneco mais parecia uma cruz, feito como a avó dela tinha ensinado. Recoberto com minhas roupas e tendo botões no lugar dos olhos e da boca. Na barriga, um bonequinho menor tinha retalhos da minha roupa e da roupa de teu pai. Foi assim que elas me passaram o poder e me ensinaram que a magia deve ser usada para o bem. "El pasador azul es bueno para atraer el amor, el rojo trae el poder". Eu fiz sempre como elas diziam e tudo funcionou bem enquanto esteve sob meu controle. Casei com Augusto, nasceste sadio. Eu segui com minha mágica protetora, lembrando sempre do que me dissera vovó: "Utiliza el vudú para su propio bien y por el bien de los que quieras, pero ten cuidado. Si usted usa para hacer el mal, devuelve el mal a usted aún más fuerte."

Digo isso tudo para entenderes, para saberes com as coisas funcionam. Chegou a hora de eu te ensinar. Assim é o vodu e assim é a vida. O que a gente faz volta direitinho pra nós, meu querido. É a lei de ouro, e não haverá de ser diferente para o teu pai. Se ao menos ele entendesse um pouco da vida, se ele não fosse tão egoísta e não pensasse só nele. Poderia se importar um pouco, que fosse, comigo e contigo, com a nossa família. Mas ele só sabe nos botar de lado. Não vê que, quando me rejeita, também te nega. Mesmo eu tendo suportado tudo, até as mulheres que ele sempre arranjava na rua.

Eu sempre fingi que não sabia de nada, porque sabia que ele ia voltar. Mas agora é diferente. O teu pai disse que vai embora de vez, e pensa que nós vamos nos contentar com a pensão que ele quer deixar. E quanto a todo o resto, tudo o que a gente construiu? Para o teu pai aquilo não vale mais nada. Nós não valemos mais nada. O fruto de nosso amor está aleijado, tetraplégico. Não anda mais, não tem vontade de viver. É assim que ele vê as coisas. Mas não. Isso é que não.

Eu estou aqui para me certificar de que a justiça seja feita. Mesmo que as coisas não estejam mais sob controle, mesmo que a magia branda não possa mais nos ajudar. Por isso te sedei, para não ficares agitado, perguntando os porquês; por isso esse sono no meio da tarde; por isso te vesti, carne da nossa carne, com o pijama de teu pai; por isso esterilizei essas agulhas e pregos, e preparei a corda que vai prendê-lo junto a nós.

Passo a corda ao redor da cama e começo a espetá-lo com as agulhas, para que ele sinta o que fez conosco. Vai doer mais em mim do que em ti, meu querido, mas eu sei que assim ele irá voltar para nós, onde quer que estivermos. Depois martelo os pregos nos pontos vitais. Furo seus olhos ferinos e vejo escorrer o sangue. Agora é tua hora de também ser forte, como a mamãe.

Eu agüentei tudo, meu filho. A dor, a humilhação, o abandono. E já fui longe demais, muito além do que imaginaria que me fosse possível. Estou cansada, mas ainda irei aonde for para encontrá-los, por mais longe que seja. Lá, os olhares serão doces e as vozes serão brandas, os corpos serão belos e livres. Então poderemos caminhar juntos e seremos felizes.

1 comentários:

Rudiran Messias disse...

Observem a data de publicação deste conto, que foi escrito semanas antes de ser publicado no blog Versões Preliminares.
Leia o conto

Como sói acontecer, muitas vezes aquilo que escrevemos prenuncia o que se opera na realidade, que sempre supera a ficção.

Foi bem depois de ser concebido e escrito, que vi este conto que parecia uma louca ficção transformado em realidade e divulgado pela imprensa brasileira, onde se conta a história do menino de Salvador (BA) que foi espetado com cerca de 50 agulhas pelo corpo em rituais de magia negra pelo próprio padrasto.
Veja a notícia

Esta história também foi seguida pela notícia de uma mulher em Santa Maria (RS), que também foi espetada pelo próprio marido.
Veja a notícia

Assisti pela televisão alguns sacerdotes de igrejas de magia negra afirmando que este tipo de ritual não faz parte da tradição de suas religiões.

Também assisti depoimentos de psicanalistas, psicólogos e psiquiatras, dizendo que este tipo de atitude provavelmente provém de problemas mentais, talvez até mesmo de perversões de cunho sexual.

Talvez, mas a quantidade de notícias sobre ocorrências similares faz pensar que esses malucos podem ter encontrado força para levar a cabo suas loucuras em alguma seita que esteja ganhando força por aqui, quem sabe alguma coisa derivada do Vodu?