quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Uns trocados [conto]

Ele disse pro patrãozinho, no dia anterior, que não carecia de pagamento naquele mês. Ainda tinha dinheiro que chegava até o final do próximo, no mínimo. Era sujeito que poupava e não era dado a luxos. Além do mais, não estava precisando de nada. Nem ele nem a irmã.
– Mas Armandinho, aceita. Esse dinheiro é teu. É do teu trabalho, homem.

– Não tem precisão, seu Pedrinho. Eu, para viver, só preciso de uns trocados. Com a graça de Deus nosso senhor, tenho até a casinha que o seu pai, que Deus o tenha, me deixou pra morar. E lá cuido da minha horta, das minhas galinhas... pra quê mais?

– Ah, vai aceitar, sim. Não precisa agora, mas pode precisar depois. Se sobrar, deposita no banco. Ou compra uma bicicleta nova.

O jardineiro tinha vergonha de estar recebendo o pagamento. Nem bem o corpo do patrão tinha esfriado e já estava ali o seu filho, com a mão estendida. Foi antes para não alongar o assunto que assinou o recibo de quatrocentos e cinqüenta reais e colocou o envelope com o dinheiro na pochete.

– Confere, Armandinho.

– Não, não precisa. O que o senhor diz que tem, tem.

Então foi pedindo licença e montando na bicicleta. Não conseguia nem olhar bem nos olhos do patrão, que se despedia dele ali, na soleira da porta da cozinha, enchendo a cuia com erva mate. Já lembrava do finado seu Pedro, que o recebera como agregado ali muitos anos antes.

Eram quase 10 quilômetros de chão para pedalar antes de chegar em casa, e precisava estar lá antes do anoitecer, para olhar as coisas da casa e se recolher. Gostava de dizer que dormia com os bichos e acordava com os bichos, porque o dia seguinte ia começar cedo.

Foi pedalando pela estrada quase deserta e pensando na vida. Eram pensamentos distraídos, porque a vida, para ele, se resumia àqueles 10 quilômetros de estrada, à casa do patrão e à sua. Por isso podia ir pedalando e apreciando as árvores, a luz do sol passando pelas folhas, as nuvens no céu. Até a voz que sempre falava dentro de sua cabeça parecia estar em silêncio, e ele se sentia tão bem que até assobiava.

Só quando chegou em casa ele abriu o envelope para guardar o dinheiro. Pensou em dar um pouco para que Jandira comprasse alguns mantimentos. Então tirou as cédulas do envelope e contou o dinheiro. Virou e revirou as notas, reordenou-as na palma das mãos e contou novamente. Havia ali algo perturbador: cinqüenta reais a mais.

Como assim, cinqüenta reais a mais? – perguntou-se. Como aquela nota tinha ido parar ali? Foi até a irmã e mostrou o dinheiro para ela. Pediu que contasse também e confirmasse. Não havia dúvida: ali estavam quinhentos reais, nota sobre nota.

E agora? – perguntava a voz em sua cabeça – e ele deve ter repetido a pergunta em voz alta, pois a irmã lhe sugeria que era só devolver o dinheiro.

Devolver o dinheiro: uma hora para ir, outra para voltar, se ele fosse bem rápido. Quando voltasse, já ia ser noite fechada. Ele estaria cansado e teria que levantar cedo no dia seguinte de qualquer maneira, pois o trabalho esperava por ele na fazenda.

– Vai ver ele nem se deu conta que tinha mais – sugeriu a irmã.

Mas a voz em sua cabeça falava mais alto. Fazia perguntas que ele não sabia responder. E se o dinheiro fosse fazer falta para o patrãozinho? E se ele precisasse dos cinqüenta reais e não achasse a nota? E se saísse para jantar num restaurante ou para comprar um maço de cigarros? E se fosse pegar o dinheiro e ele não estivesse lá onde ele pensou que tinha colocado? E se pensasse que alguém entrou na casa e tirou o dinheiro de sua carteira? Não poderia pensar que esse ladrão era logo ele, o jardineiro?

Seria uma desconfiança entre os dois. Talvez não desconfiasse o suficiente para perguntar a ele sobre o dinheiro, na manhã seguinte. Mas podia ser o bastante para fazer algum comentário com a mulher, ou com o vizinho. Então eles iam conversar um pouco uns com os outros e teriam a certeza de que fora ele mesmo. Chegariam à conclusão de que ele era desonesto. Pensariam que tinha contado o dinheiro logo que cruzara o portão e ali mesmo tivesse percebido a nota a mais. Achariam que ele tinha levado a noite toda pensando se devolveria ou não.

A irmã via sua preocupação, seu silencio. Então preparou-lhe um chimarrão e o deixou sozinho à mesa enquanto cozinhava. De qualquer forma, pensava ele, quando devolvesse o dinheiro teria que dar muitas explicações. Era um sujeito correto, não queria que pensassem mal dele. A única coisa que tinha de seu, além da casinha que dividia com a irmã, era sua honra.

Mas e se o patrãozinho não acreditasse nele? Se pensasse que ele tinha mesmo roubado o dinheiro e só se arrependera ao receber o pagamento que lhe era mesmo devido? E se acreditasse que tinha colocado a nota dentro do envelope por engano, mas pensasse que ele percebera logo o valor a mais e tinha fingido que não por esperteza? Que só tinha voltado atrás na manhã seguinte? Podia pensar que ele tinha se fingido de simples, mas que na verdade era ganancioso, que queria tirar vantagem. Ainda mais agora, que o velho tinha morrido e deixado a casinha para ele. Podia achar que ele estava desfazendo da bondade do pai e queria mais, isso sim. Que pensava que ter ficado com a casa ainda era pouco.

Jandira colocou o jantar na mesa e ele comeu rápido. Até a comida tinha um gosto ruim naquela noite. Não quis nem café nem uma colherada de doce de leite. Foi direto para a cama, sem tirar o seu prato sujo da mesa e sem dar boa noite. E ali revirou-se de um lado para o outro, demorando para conseguir dormir.

Quando conseguiu, foi pesadelo desenterrando uma parte escura de seu passado. A voz narrava o sonho para ele, mas ao mesmo tempo as imagens eram muito reais, ele estava revivendo o caso antigo. Percebia que a voz, na verdade, o comandava. Os policiais vinham buscá-lo na casa de seus pais, acusando-o de roubo. Ele jurava que não tinha feito nada. Os policiais diziam que tinham testemunha. Ele dizia que era um engano. O pai permitia e até ordenava que o levassem, se aquilo era mesmo verdade, porque na família dele não tinha ladrão. E num piscar de olhos ele estava atrás das grades na delegacia. Um lugar úmido, onde ficou durante uma semana, até pegarem o verdadeiro assaltante e se darem conta de que tudo era um engano. De que ele caíra em uma armadilha e nunca mais voltaria a ser o mesmo. O olhar das pessoas sobre ele nunca mais seria como antes.

Acordou mais cedo do que o habitual, suando frio, despertado pela voz dentro da cabeça. Preparou ele mesmo a marmita com as sobras do jantar e saiu em sua bicicleta, sem café, antes mesmo de amanhecer. No caminho, ficava ensaiando uma maneira de contar ao patrão o que acontecera, de explicar tudo sem que se criasse nenhuma desconfiança. Enquanto a voz lhe soprava na cabeça outras idéias, outras perguntas. E se o patrão tivesse colocado aquela nota ali de propósito, como uma espécie de aumento? Nesse caso, o valor do recibo também seria maior. E se fosse uma espécie de teste da sua honestidade? Podia considerar que tinha passado na prova? Mas, ainda, e se aquela nota de dinheiro fosse outra armadilha para acusá-lo de roubo? De qualquer modo, o patrãozinho poderia chamar a polícia e dizer que ele era ladrão – sugeriu a voz, em tom de certeza. Assim, poderia até mesmo tentar recuperar a casinha que o pai tinha deixado para o jardineiro.

Se fosse verdade, ele podia acabar preso, e até sua irmã iria ser mandada embora da casa, eles perderiam o pouco que tinham. A liberdade, o lugar para dormir, a horta. Até a bicicleta velha, que para ele estava muito boa, porque não queria sair por aí com uma bicicleta nova que só serviria para que os outros ficassem com inveja dele.

Aquilo tudo lhe fazia sentir o peito apertado. Uma falta de ar. Uma vontade de chorar. Tentava não ouvir a voz dentro da cabeça, tentava pensar em uma forma de se explicar, e pedalava. De vez em quando, os olhos se enchiam de água só de pensar no que poderia acontecer.

Chegou à fazenda quando o sol estava despontando, e esperou diante do portão por alguns minutos, antes de entrar. Do outro lado, os cachorros se agitavam e não sabia se seus latidos eram ameaças ou boas-vindas. Olhava para a casa através do portão e lembrava da janela da cela onde tinha sido preso quando era mais moço. Estava com medo de entrar. Medo do que aconteceria dali em diante.

Mas como evitar o destino, quando ele já estava armado. Pensou que não adiantava fugir. Escaparia para onde? E faria o quê? Continuaria fugindo para sempre? Porque era claro que iriam atrás dele, era certo que o caçariam até o fim do mundo. E ele estaria correndo e correndo e pensando em Jandira, que era uma irmã tão boa. Fazia as faxinas e ainda ajudava em casa e na horta. O que seria dela sem casa?

O negócio era entrar e tentar devolver o dinheiro, ver se o patrão aceitaria de volta e acreditaria nele. Tinha que fazer isso, mesmo que não pudesse ser de cabeça erguida. E se o patrão pensasse que ele não era direito, ele nem voltava mais. Agora, a questão da polícia não era bem assim. Se tivesse polícia no meio, ele teria que se defender. Tentou montar uma estratégia na cabeça, lembrando onde ficava a tesoura de poda, a enxada, o garfo do feno. Pensou em como passar pela soleira da porta da cozinha e pegar as facas de churrasco. Aquelas seriam suas armas, se não pudesse fugir.

Conseguiu se acalmar um pouco, apenas o suficiente para ter a clareza de que fugir seria bem possível caso fosse necessário, e depois ele via o que iria fazer. Então ele abriu a porteira com a sua cópia da chave e foi entrando, cercado pelos cachorros que o rodeavam como sempre, pedindo carinho. Quase chorou de novo, pensando que talvez aquela fosse a última vez que os veria.

Foi caminhando e, antes de chegar na porta da cozinha, que já estava aberta, com o fogão à lenha funcionando a todo vapor, já segurava a nota de cinqüenta reais na mão. O coração latejando no peito, nas veias e artérias. Ele viu que o patrão estava preparando um mate e que largava a cuia para cumprimentá-lo. Então, estendeu a mão com o dinheiro para o patrão, sem conseguir dizer nada, nem olhá-lo bem de frente.

O patrão pareceu se divertir.

– Que é isso, Armandinho? Tá rico, pra vir me dar dinheiro logo cedo?

O jardineiro sentiu o coração bater mais forte e rápido. Não sabia se era de alegria ou de medo. Não sabia se o que o patrão tinha dito era brincadeira ou se estava querendo pegar ele no pulo.

Então tomou coragem e olhou para o patrão, enquanto tentava encontrar palavras para se explicar.

– Esse dinheiro veio a mais no envelope, patrãozinho, junto com o pagamento.

O rosto do patrão era claro e simpático. Mal olhou para a nota de dinheiro que ele segurava.

– São cinqüenta reais, patrão.

O homem olhou bem dentro dos olhos de Armandinho, sorriu e disse que ele podia ficar com o dinheiro. Então, ele viu que tudo havia sido um engano, que a voz que falava dentro de sua cabeça tinha mentido.

– São só uns trocados – disse o patrão –. Usa pra tomar umas cervejas.

Foi então que ele pensou em tudo o que tinha e desatou a chorar, deixando o patrão sem entender nada.

Ele chorava porque a casinha dele ainda estava lá, a irmã estaria em casa quando chegasse, e eles continuariam colhendo as verduras e as frutas. Ele ainda era livre para pegar sua bicicleta e ir trabalhar todos os dias.

O patrão lhe deu um meio abraço que era mais um tapinha nas costas, com o cenho franzido, enquanto fazia o mate roncar. Encheu a cuia de água quente e lhe estendeu.

– Que é isso homem. Deu pra chorar, agora?

O jardineiro se desculpou, tomou o mate que lhe parecia mais doce do que nunca. Era de um gosto verde da cor do dinheiro, da cor das árvores; era quente e acolhedor e matava até a sede da alma. Desculpou-se, agradeceu, bebeu o mate e foi tratar dos canteiros, arrancar as ervas daninhas. Trabalhou o dia todo, como se aquela terra fosse dele e, antes de ir embora, passou na venda e usou uma parte do dinheiro para comprar uns biscoitos para os cachorrinhos. No caminho, bebeu uma cerveja no bar, fez um brinde ao patrão e ao patrãozinho. Ainda sobraram uns trocados, que ele deu de presente para Jandira comprar o que quisesse.

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