quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Olhos negros [conto]

Acordou alguns segundos antes de o despertador tocar, como costumava acordar todos os dias.

Era uma manhã especialmente clara. A luminosidade invadia o quarto como nunca percebera que poderia iluminar. Pensou que deveria providenciar uma dessas cortinas mais modernas, emborrachadas e com foto-isolamento, mas isso faria com que dormisse até mais tarde.

A esposa continuou ressonando ao seu lado, apesar do pouco barulho que ele não conseguia evitar. Normalmente, ela já despertava apenas com o seu movimento mínimo de levantar, aquele afundar do colchão que mexia toda a cama. Ela tinha o sono muito leve. Mas hoje parecia dormir profundamente, como se não fosse acordar tão cedo.

Foi até a cozinha e colocou a água para ferver. Enquanto isso, moeu o café e passou manteiga no pão. Mastigou o pão diante da janela e estranhou o movimento na rua para aquela hora da manhã. Eles moravam no segundo andar de um prédio na principal avenida do centro da cidade, e àquela hora a rua já devia estar intransitável. Estava apenas movimentada, como se fosse época de férias.

Passou o café, que soltava um aroma delicioso. Ele se considerava um grande apreciador da bebida, mas gostava era do bom café passado pelo coador de papel, que sabia preparar como ninguém. Ele tinha a ciência da temperatura da água, tinha o cuidado de escaldar o recipiente do filtro e também a jarra de vidro e as xícaras onde iria servi-lo. Comprava um grão que moía na hora e custava vinte e cinco reais o quilo. Cem por cento arábica. Quando tudo estava pronto, despejava lentamente a água sobre o pó e via o crema cor de caramelo escuro se formando. Gostava mais do cheiro que se desprendia da bebida do que de bebê-la. A esposa também adorava a xícara de café que ele lhe levava todas as manhãs e dizia que vinha com carinho, mas sempre deixava a tarefa de prepará-lo para ele. Era um café com sabor forte, naturalmente doce e terroso, que dispensava até o açúcar.

Ao entregar-lhe a xícara, ele viu que os olhos da mulher pareciam mais escuros do que o habitual. Ela tinha olhos verdes que, dependendo da época do ano ou do clima, pareciam um pouco mais ou menos azulados, mas nunca os vira tão escuros. Estavam quase turvos. Ele comentou isso, e ela até foi se olhar no espelho para constatar por si mesma o fenômeno. Estavam mesmo mais escuros, mas a visão parecia continuar intacta. Estavam ali os móveis, as cortinas, a rua lá embaixo já se encha de gente. Tudo muito claro, até mais brilhante do que nos dias anteriores, pois verão já começara.

Ele também se olhou no espelho mas seus olhos castanho claros estavam no mesmo tom, na mesma cor de mel que sempre tiveram. Deram de ombros e se arrumaram apressadamente para o trabalho. Ele desceu antes, como sempre, pois seu expediente no banco começava mais cedo. Abriu caminho com seu carro pelo engarrafamento e chegou a tempo de abrir as portas, como fazia de segunda a sexta. Sempre dava certo. Gostava de dizer que suas manhãs eram cronometradas.

Era o quinto dia útil do mês, e isso fazia aumentar a circulação de pessoas na agência. Antes mesmo de abrir o banco, a fila já estava formada do lado de fora. O atendimento começava cedo e só acabava por volta das 16:30 e, durante o expediente, mal dava tempo de respirar. Foram chegando os colegas e depois aquele mar de clientes, aos quais ele atendeu um atrás do outro. Alguns já eram conhecidos, outros vinham apenas fazer depósitos ou saques, mas naquele dia ele começou a olhar cada um deles bem no fundo dos olhos. Ele começou a observar que todos estavam com os mesmos olhos turvos e escuros de sua esposa, e em determinado momento chegou a comentar isso com o colega. Ele apenas demonstrou estranhamento e disse que deveria ser impressão; perguntou se estava se sentindo bem, se tinha febre, pois os olhos das pessoas lhe pareciam normais – nem mais claros, nem mais escuros. Mas para ele era tão evidente, e quanto mais o tempo passava, mais escuros pareciam os olhos das pessoas.

Terminado o expediente, ele voltou para casa. No caminho de volta, continuou observando os olhos de todas as pessoas pelas quais passava. Parou no posto de gasolina para abastecer e aproveitou para tomar um café de máquina na loja de conveniência. Enquanto bebia, observava as pessoas que estavam na loja. Quando olhou bem nos olhos de um dos clientes, o rapaz se irritou e perguntou qual era, porque ele o encarava. Ele se esquivou, franziu o cenho e negou. Disse que não estava olhando nada, então o rapaz resmungou homofobias e se afastou, com a fisionomia ainda alterada e os olhos muito, muito escuros.

Chegou em casa com sede e bebeu um copo de Coca-cola com bastante gelo. Sentia-se exausto, e a sensação do líquido descendo pela garganta foi quase revigorante. Quando estava com mais fome e sede, o refrigerante lhe parecia mais doce e gaseificado. Ele virou aquele copo como se fosse cerveja e sentiu o cérebro quase congelar, uma ardência nos olhos.

Mas logo o cansaço tomou conta dele novamente, como um manto que tivessem colocado sobre os seus ombros. Ele já estava preocupado com a história dos olhos negros. Olhou-se no espelho e se inquietou ainda mais. Diante dele, do outro lado da lâmina, viu sua imagem perfeita.

Olhou bem no fundo de seus olhos, do outro lado, e não sabia dizer se estavam mais escuros. Pelo menos ainda não pareciam de todo opacos. Brilhavam um tom abaixo, talvez, mas nada que fosse perceptível para os olhos alheios. Sentiu-se tomado por uma estranha angústia e ficou com medo de que seus olhos estivessem escurecendo e fossem ficar negros como o café, pretos como a Coca-cola – impenetráveis, como os olhos de qualquer outra pessoa.

1 comentários:

Rudiran Messias disse...

Notas sobre a versão 1:
• Lido na oficina Charles Kiefer
• Refazer
• Evoluir na alegoria
• O final ainda está complicado
• Comentários artificiais do narrador (intromissões) - tirar

Possibilidades para novas versões:
• E se os olhos do narrador, diferentemente das outras pessoas, clareassem? Do jeito que está, ficou com o final muito óbvio.
• 8° parágrafo: "(...) No caminho de volta, continuou observando os olhos de todas as pessoas pelas quais passava." do jeito que foi colocado, ele estava no carro. Sendo assim como podia ver os olhos das pessoas? Especificar melhor.

Vícios de linguagem / limpezas necessárias:
• Estava, estava, estava. De onde vieram todos esses "estava" no texto? Por alto, contamos uns 13